segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

As Agulhas e a Memória – Publicação 12

 

O Museu de Antigas Máquinas Manuais de Costurar (MAMC) é um acervo particular e privado, registrado no Ministério da Cultura, que desenvolve pesquisa e preservação deste importante instrumento.

“É vedada a utilização de quaisquer informações contidas em suas publicações,  para fins lucrativos ou comerciais, sem autorização expressa de seu curador, sob pena de indenização judicial.”

   As agulhas

Sabe-se que começamos a costurar há cerca 20 mil anos, durante a última Era Glacial, pois que arqueólogos descobriram agulhas produzidas a partir de ossos afilados, com orifício. Os fios eram finas tiras de couro ou tripas secas. Com estas rudimentares ferramentas costuravam abrigos com peles animais.

Lá por 2.200 a.C., já eram utilizadas por especialistas chineses (Shamans), nas técnicas de espetar agulhas de osso em certos pontos do corpo, para aliviar a dor (acupuntura).

As mais antigas agulhas de aço (ditas “ferro”) da história, foram encontradas em Manching, Alemanha, região ocupada pelos Celtas, no século III a.C.

Na tumba de um oficial da Dinastia Han (202 a.C.- 220 d.C.) foi encontrado um jogo completo de costura, com agulha e “dedal” metálico para proteger o dedo ao empurrá-la.

agulhas b

Antigas agulhas manuais de aço (superiores) e de bronze (inferior) comparadas á dimensão de um palito de fósforo (acervo do autor)  

A evolução da agulha (assim como a bicicleta e o limpador de para-brisa) não surpreendeu, pois que mantém seu desenho básico até hoje, embora alterado seu friso (calha), posição e dimensão do orifício, forma de ponta,...

A agulha de máquina de costurar, bastante semelhante com as atuais, foi inventada em 1755, pelo alemão Karl Weisenthal, mas como sua malograda máquina não teve êxito, todo o conjunto foi relegado, e esquecido por quase um século.

Elias Howe utilizou modelo semelhante em 1846 (Massachusetts), em sua máquina de costurar. A partir desta, não sofreu mudanças, apenas pequenas alterações específicas para diferentes finalidades.

agulha d

agulha e

agulha k 

Imagens de agulhas antigas (New Domestic, Singer, Wilcox & Gibs)

Como meu acervo é de máquinas de costurar manuais, fabricadas entre 1850 e 1950, muitos modelos e épocas utilizaram agulhas diferentes.

Para o perfeito restauro, seria necessário tornear a parte anterior, mais larga, processo dificílimo pela esbeltez das peças. Tentei reduzi-las por abrasão, no esmeril, situação não menos árdua e perigosa.

agulhas h 

Agulha atual (acima), comparada à utilizada em algumas máquinas antigas (inferior)

Consegui-las atualmente, consiste em árduo trabalho de garimpo por todo o mundo. Visitei sem sucesso alguns antiquários alemães, franceses e suíços. Em Brugges (Bélgica) consegui algumas poucas raridades numa feira dominical, quase a peso de ouro.

Mas todo este relato consiste apenas num prólogo fundamental desta inacreditável e verdadeira história, a seguir.

   A memória

Eu viajava pelo interior de Santa Catarina, proximidades de Blumenau, num dia do escaldante verão de 1997. Ao passar pela pequena cidade de Rio dos Cedros, procurei um bar para beber qualquer refrigerante. Ao sair do estabelecimento vislumbrei uma oficina de máquinas de costurar, o que seria um refrigério também para a alma.

O idoso proprietário vendeu-me duas máquinas antigas e, denotando abatimento, discorreu sobre sua grave cardiopatia e o receio de realizar melindrosa cirurgia reparadora. Perguntei-lhe se possuía agulhas para máquinas antigas, respondeu-me simplesmente que não existem mais.

Conversei longamente com ele, induzindo-o positivamente sobre as vantagens da cirurgia e tentando melhorar seu abalado ânimo.

Segui viagem, mais preocupado com a tristeza demonstrada por ele e a esposa do que pela satisfação das duas máquinas adquiridas.

Mais de uma década depois, ao visitar um amigo em Timbó-SC, passei por Rio dos Cedros. Encontrei a antiga oficina de máquinas de costura e deparei-me com o mesmo proprietário, aparentemente muito rejuvenescido.

Surpreendentemente e sem qualquer palavra, tomou-me pelo braço, abriu uma velha gaveta e retirou de lá um pequeno e velho envelope. Dentro haviam três raríssimas agulhas antigas, já oxidadas pela longa espera de meu possível regresso.

agulhas c

As raras antigas, comparadas com uma atual

Não consegui sequer balbuciar algo e, pasmo e emocionado, ouvi-o afirmar que aquelas minhas palavras haviam encorajado-o à cirurgia, que resultou em evidente sucesso.

Sua memória, sua dedicação na busca e guarda daquelas raras agulhas por uma dúzia de anos, na tênue esperança de minha remotíssima possibilidade de visitá-lo, são características que excedem à compreensão lógica, situam-se num âmbito irracional, num evidente universo metafísico.

Esta e outras tantas histórias enriquecem nosso acervo de peças físicas, incorporando a elas uma conotação incomum, sobrenatural ou até mística.

“Não terei receio de emocionar-me pelas belas ações e pela bondade dos que me cercam.” (12º Mandamento da Serenidade).

 

Até a próxima

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A Rainha Clementina – Postagem 11

 

Em viagem entre Taquara e Porto Alegre - RS, visitei o Sr. Siegfried, um antiquário (também artesanato, floricultura, ... ), na rodovia, onde sempre encontro alguma máquina antiga.

Desta vez, resgatei uma, em deplorável estado. Certamente esteve submetida à intempéries por décadas.   Além disso, com todo o mecanismo em adiantado estado de oxidação, as peças móveis estavam travadas, assim como se fundidas juntas.

Observei que, apesar da macabra aparência, estava completa (ou quase).  Adquiri a peça para submeter-me ao inacreditável desafio de tentar recuperá-la.

C Muller 1119993

Aparência deplorável

 

C Muller 1119993a

Mecanismo “encravado”

Dias depois, coloquei-a na bancada da oficina, prendi-a na morsa e tentei retirar os dois parafusos da fronte (cabeçote), após borrifá-los com desengripante. Um deles quebrou (o que era de se esperar), um mau presságio vaticinando a triste possibilidade de transformação em sucata.

Mas, induzido pelo meu incansável anjo da guarda, tentei a retirada do segundo parafuso, martelando uma esbelta talhadeira na lateral de sua fenda da cabeça, para forçá-lo a girar, mesmo comprometendo sua estrutura.  Aparentou rodar um insignificante “micro-ângulo”.

A partir daí, o procedimento foi borrifá-lo novamente e apertá-lo, com uma potente chave de fenda, para que o desengripante penetre. Com muita dificuldade, ele obedeceu no curto movimento positivo e depois (força) no anti-horário. Ele saiu, mas a máquina gemeu. Ouvi dela, algo como um sussurro melancólico, uma esmorecida voz em súplica alemã: “mich’etten, mich retten, michr...” (salve-me,..)

Foi a mensagem suficiente para empenhar-me na desmontagem total.

C Muller 1119993d

Fronte aberta (cabeçote)

 

Semelhantes dificuldades sucederam-se nos dias seguintes, dedicados quase que integralmente ao intento de ressuscitá-la. Diversos parafusos foram quebrados, seus locais e restos refurados, roscas refeitas. Algumas engrenagens tiveram dentes quebrados pelo exaustivo torque aplicado, na ânsia de fazer mover.

Os eixos, solidarizados no bloco pela oxidação, tiveram sucessivos choques térmicos na tentativa de fazerem girar e serem retirados. Outras partes antes móveis, agora sofreram pesada agressão física para aceitarem o temporário divórcio. 

C Muller 1119993ba

Alguns teimosos e corroídos parafusos (cinza) e eixos (preto)

 

C Muller 1119993n

Parafusos fixadores de biela, ao lado de pequeno palito de fósforos

 

Mais uns dez dias de longas jornadas, com a oficina tomada por dezenas de ferramentas, vários recipientes contendo solventes específicos (ácido removedor (Remox), fosfatizante, querosene, desengripante,...) com peças mergulhadas (tal um buffet de sopas).

Com o lixeiro cheio de papéis-toalha imundos e luvas de procedimento rompidas, as mãos e dedos feridos, iniciei a montagem...

C Muller 1119993g

Algumas peças do cabeçote (fronte)

 

A decorrência axiomática então se fez presente: as peças desoxidadas (limpas) não mais encaixam!   As engrenagens encolheram seus dentes, os mancais folgaram seus eixos, cames liberaram seus pinos, barras trapezoidais não deslizavam mais nos trilhos encolhidos,...

Mas, sempre que o manto do desânimo e do cansaço ameaçava tolher-me o devotamento, eu lembrava de seu derradeiro sussurro e assim, andava sempre mais um passo.

A adaptação de todas as peças mereceu um trabalho específico e exclusivo para cada uma. Algumas preenchidas, outras desbastadas, alterados encaixes, ângulos, roscas,...

Muitos parafusos foram refeitos e, como já citado, as roscas antigas são atualmente incompatíveis, assim como suas “cabeças”, seus “pescoços”, encaixes,...

C Muller 1119993f

Restaurando os dentes impelentes

 

Algumas peças foram “adaptadas”, retiradas de máquinas doadoras (sucatas), outras foram “inventadas” a partir de inusitados componentes, como o fixador da mesa metálica na base de madeira, construido com um pedaço de agulha veterinária, arruela vedante e a ponta de parafuso inoxidável, unidos com resina epóxi.

C Muller 1119993i

Fixador da base na mesa

 

A base de madeira não fugiu à regra do quebra cabeças, pois foi executada a partir de nove pedaços de diversas outras sucatas. Um bom “olho clínico” poderá identificar a colcha de retalhos, finalmente estruturada e funcional.

A raríssima e linda manopla de louça, também foi doação de outra moribunda.

C Muller 1119993k

Enfim, após muitas voltas de nossa Terra mãe, eis que surge, ao rufar dos tambores surdos e dos moucos clarins, a tão almejada e nobre rainha Clementina (do latim: “a pequena graciosa”).

Seu coração pulsa mais que o meu, gira solene, rompe o silêncio noturno num farfalhar metálico, quiçá por mais um século.

C Muller 1119993l  

Imponente, majestosa faz pose, dilacera o protocolo e é ela o próprio cerimonial (Clemens Muller 111.993ª).

Darlou D’Arisbo – fevereiro de 2012

(Em homenagem ao amigo e incentivador Miguel Guggiana)