terça-feira, 29 de outubro de 2019

Mais uma linda Clemens Muller - Publicação 34


Para ampliar as fotos basta clicar sobre elas. 

Dou início a esta postagem com um agradecimento aos atuais 325.000 visitantes de nossas singelas publicações, oriundos de dezenas de países (Estados Unidos, Portugal, Rússia, Alemanha, França, Espanha, Ucrânia,...) que muito nos incentivam a continuar com a intenção de preservar estas fantásticas e históricas maquinas de costurar. 

O motivo desta:

Recentemente, ao navegar pela internet, observei, num site de vendas, uma máquina de costurar Clemens Muller, fabricada no início do século passado. Aparentava estar completa, mas com claros indícios de corrosão por ferrugem. 
E, embora a experiência tem nos alertado a tais comprometedores indícios, optamos por arriscar em empreender mais esta aventura. 
Ao recebermos a máquina, já esperando seu pior estado, surpreendemo-nos pela sua aparência, pois estava íntegra, ainda que com as decorrências de seus mais de cento e cinquenta anos de idade. 

Sua aparência ao recebê-la 

Imediatamente dedicamo-nos a árdua tarefa de desmontá-la, integralmente. Com esta idade, muitas peças são teimosas, obstinadas em se manter em seu secular alojamento. Mas com extremo cuidado, ferramentas apropriadas, jeitinhos daqui e dali... 
As pequenas vão se soltando e mergulhando numa “piscina” de solventes, onde ficaram repousando por dois dias.

Início de desmontagem do mecanismo inferior

Posteriormente, periciadas, as aprovadas foram enxugadas e imergidas em desoxidante, por mais 24 horas.
As reprovadas seguiram para limpeza mais agressiva (espatular, escova de aço,...) e depois voltaram à etapa anterior.
As peças grandes (mesa, base, corpo, volante,...) receberam tratamento diferenciado, tentando manter sua aparência de quando em funcionamento. Assim, suas marcas de utilização deveriam permanecer, embora sem sacrificar o exitoso funcionamento, conduta fundamental de nosso procedimento.

A seleção das peças para atenção individual

Como, normalmente o mecanismo já apresenta folgas por desgaste, procura-se evitar abrasões enérgicas (raspagens), o que resultaria em desajustes mecânicos. Assim, cada peça foi analisada conforme sua funcionalidade e limites de dimensões.
Felizmente – o que é raro em idosas – a maioria dos parafusos foram retirados com chave de fenda convencional, apenas dois foram descartados e substituídos por similares de máquinas doadoras de peças (inservíveis). Não foi necessário auxílio de micro talhadeira, procedimento muito comum em restauros anteriores e que inutiliza os parafusos.

Alguns parafusos são “microscópicos” e seus procedimentos são meticulosos, delicados, para que a oxidação existente não corrompa as minúsculas nervuras da rosca. 

Peças do mecanismo da fronte, após limpeza e desoxidação vão ao polimento, ajuste e montagem

Mecanismo inferior já montado, ajustado e funcionando

Os eixos (vertical e horizontal), engrenagens cônicas, volante motriz,... e todo o mecanismo da parte inferior foi limpo e desoxidado. Algumas peças foram retorneadas e polidas, sendo lubrificadas e montadas com critério para bom funcionamento.
Poucas peças foram executadas (por inexistência ou inadaptabilidade das presentes): apenas dois parafusos, um pino suporte de carretel e dois fixadores da haste móvel inferior.

A Clemens Muller, restaurada, em pose de perfil

Embora raramente realizamos a pintura total (preferimos retoques, para preservar sua originalidade), neste caso, o comprometimento por oxidação tomava mais da metade da área revestida e fez-se necessária cobertura geral. 

Majestosa, a Clemens Muller de 1910, passa a integrar nosso acervo, 
já com 170 máquinas antigas restauradas.


Pensamento do dia:

"Há dois tipos de pessoas que não interessam à uma boa empresa: As que não fazem o que se manda e as que só fazem o que se manda" (H. Ford)

Prof. Darlou D'Arisbo






domingo, 17 de fevereiro de 2019

O restauro mais difícil dos últimos 40 anos - Publicação 33



 Para ampliar as fotos basta clicar sobre elas.

No início de 2018, uma gentil senhora contatou-me para saber se eu poderia restaurar uma antiga Clemens Muller que ela havia adquirido de um vendedor de pastéis, na estrada para Bragança Paulista.  Pelas fotos recebidas, parecia estar completa, embora emperrada.
Nosso acervo possui dezenas de Clemens Müller e mais algumas em reserva técnica (descartadas para doação de peças), o que insinuava pleno sucesso neste restauro. 
A máquina quando recebida

Dias depois recebi a máquina e, ao verificá-la, me preocupei, pois a realidade apresentava-se bem pior do que na foto, pois além da generalizada ferrugem, apresentava sinais de ter passado por incêndio.   A base de madeira havia sido trocada e o logotipo estava corroído, sinais factíveis que complementariam a hipótese.
Logotipo corroído por calor 

Para abrir a tampa lateral fez-se necessário romper os parafusos, pois eram grosseiramente adaptados e, ao verificar a parte interna, observei que houve infiltração de água por longo tempo, com sério comprometimento dos eixos (horizontal e vertical) e de suas engrenagens cônicas, por profunda oxidação.
Posterguei a remota possibilidade de sacá-los e dediquei-me a retirar o eixo do volante. 
Ele assemelha-se a um “corpulento” pino, (compr. 70mm, diâmetro aprox. 13mm) levemente excêntrico em sua metade, para permitir regulagem na distância entre as engrenagens mães do acionamento. 

Mas o teimoso eixo negou-se a mexer um “mícron” sequer e constituiu um grande obstáculo para continuidade.  Por dois dias, todos os procedimentos possíveis e usuais foram tentados em vão.   Acostumado a velhos e teimosos sistemas mecânicos, empreendi “terapias” mais agressivas.  Realizei furos longitudinais no bloco, rentes ao eixo e injetei desengripante. Apliquei impactos dinâmicos com punção em seu centro interior, choques térmicos com maçarico a gás,...
Os resultados negativos frustraram a continuidade e a primeira desistência passou a ser possível, frustrando toda a intenção de ressuscitá-la.

Tentativas de remoção do eixo do volante
Apenas no segundo dia, o obstinado eixo cedeu à nossa pertinácia. Inicialmente um décimo de nada, suficiente para o "arauto anjo do bem soas as trombetas". E, de ínfimo em ínfimo, ele deslizou, abandonando décadas na sua rígida morada,  deslocando-se algumas insignificantes frações de milímetros, a cada dezena de robustas pancadas...
Com o ânimo revigorado, planejei a continuidade. O eixo saiu, contrariado, arrastando fragmentos do bloco.
O eixo já retorneado ao lado do volante, engrenagem maior e manopla

Lembro do que escrevi na Postagem 21:
(...) As peças parecem manifestar um patente e curioso humor. Por vezes, recusam-se a ser consertadas. Encravam seus parafusos, emperram suas engrenagens, suas madeiras atraem térmitas cupins, rompem-se, deixam-se cair... Outras vezes, ao contrário, oferecem-se emitindo sons rangidos, reflexos de luz... Vivem seus instantes de agudas crises depressivas, ou momentos de alegria e prazer, tentando aos seus modos, as mais inacreditáveis demonstrações da centenária existência (...).

No sentido de pausar o estresse do extenuante capítulo, passei a dedicar-me à base de madeira.
Embora não original, sua parte maior foi executada em peça única de madeira nobre, que mereceu ser plenamente preservada.  Estava rompida (quebrada) na região frontal e possuía "inquilinos" residentes na lateral. São "brocas da madeira" - pequenos besouros em fase larvária - cujos orifícios foram limpos e preenchidos com cavilhas, solidarizadas com adesivo vinílico.


Base rompida na parte frontal
Dois dos quatro habitáculos das larvas de "broca da madeira"
Ao abrir sua parte traseira, uma insólita surpresa: estava afixada internamente com dois pedaços de parafusos (uns 35 mm), destes utilizados para fixar elementos metálicos, (originalmente com porcas rosqueadas) e sutilmente ali introduzidos..  
Trechos de parafusos usualmente utilizados para fixação metálica
Suas partes, após limpas, foram novamente encaixadas e solidarizadas com adesivos vinílicos apropriados.  O conjunto recebeu sucessivos lixamentos, aplicação de selador, lixa fina e enceramento.

Retornando ao bloco (parte superior da máquina), concluímos pela absoluta inviabilidade de reutilização.  Seus dois eixos e engrenagens estavam como fundidos, sem qualquer possibilidade de retirada.
O eixo seccionado para reutilização da engrenagem secundária
Nos restauros, evitamos a instalação de peças não pertencentes ao conjunto original.   
E, como o bloco (carroceria) estava inutilizável, a segunda possibilidade de desistência se fez presente e a decepção cobriu o intento.
Mas ainda antes de contatar a proprietária para comunicar o desolador insucesso da empreitada, fui vasculhar na nossa reserva técnica, onde encontrei uma Clemens Müller similar, que ali estava descartada há 40 anos, tendo apenas o corpo e eixos superiores perfeitos.

Nossa ilustre doadora, após merecida limpeza
Novamente o propósito do possível êxito aplacou a renúncia e optamos pela persistência.  Com a autorização da proprietária e alguns ajustes, adaptamos naquela “carroceria” a parte mecânica superior possível de resgatar da original.

Passamos a dedicar atenção ao mecanismo inferior, cuja aparência era não menos lastimável.  Mas, com penoso trabalho, teve todas as peças retiradas, trabalhadas (desoxidadas, retorneadas, polidas, ajustadas,...) e reinstaladas. 

Além de firmemente solidarizadas por oxidação, havia alguns aracnídeos moradores

O mancal excêntrico do eixo vertical, acionador da biela, contrapinos de fixação, cursor da lançadeira, eixo de deslocamento, reguladores, fixadores, biela dos dentes impelentes, molas, limitadores, parafusos (e roscas retorneados), perfis de deslizamento, charneira cônica,... foram, um a um, constituindo o complexo mecânico inferior, concluído e funcionando a contento. 

O mecanismo da fronte apresentava-se análogo ao sistema inferior em sua patente inviabilidade. Mas com partes adaptadas e recebidas a partir da doadora, consegui um razoável desempenho.
O eixo da agulha, solidamente emperrado, com sua abraçadeira rompida

Muitas outras peças foram também retorneadas, polidas e acomodadas. A manopla de acionamento, em louça branca, teve seu eixo e articulação restaurados, permitindo ser dobrável, para transporte ou guarda, como era originalmente. 
As hastes suportes de carretéis, parafusos de fixação do bloco, pinos fixadores,... após desoxidação, limpeza, retorneados ou com suas roscas refeitas. Assim como calcador (patinha), dentes impelentes, tampas da lançadeira, carretilha e lançadeira, tiveram similar tratamento.

Alguns retoques de pintura (quase imperceptíveis) foram realizados, sempre preservando o aspecto estético de quando na época de sua atividade.
Optamos por uma agulha adaptada (torneada), considerando que as específicas para a Clemens Müller são atualmente fabricadas na República Theca e muito onerosas.
O autêntico emblema dourado também foi um regalo da doadora, já que o anterior estava flagrantemente prejudicado.
A Clemens Muller renascida após árduo restauro

Embora tenhamos casos de desistência por absoluta inviabilidade, este será registrado como o restauro mais árduo de nossa história e, paradoxalmente,  que nos contemplou com o gratificante final feliz.


 A Clemens Muller, exibe sua imponência com sonoro dinamismo, para regozijo de todos os que sabem admirar sua centenária história, passada nas mãos dos tantos que a manusearam e que não mais pertencem ao nosso mundo terreno. 


Nesta postagem, a nobre homenagem à Sra. Marta, proprietária da maquininha, 
pela sua confiança em nossos humildes préstimos de restauro. 

Darlou D'Arisbo