Para ampliar as fotos basta clicar sobre elas.
No
início de 2018, uma gentil senhora contatou-me para saber se eu poderia
restaurar uma antiga Clemens Muller que ela havia adquirido de um vendedor de
pastéis, na estrada para Bragança Paulista.
Pelas fotos recebidas, parecia estar completa, embora emperrada.
Nosso
acervo possui dezenas de Clemens Müller e mais algumas em reserva técnica (descartadas
para doação de peças), o que insinuava pleno sucesso neste restauro.
Dias
depois recebi a máquina e, ao verificá-la, me preocupei, pois a realidade
apresentava-se bem pior do que na foto, pois além da generalizada ferrugem, apresentava
sinais de ter passado por incêndio. A
base de madeira havia sido trocada e o logotipo estava corroído, sinais factíveis
que complementariam a hipótese.
Para
abrir a tampa lateral fez-se necessário romper os parafusos, pois eram
grosseiramente adaptados e, ao verificar a parte interna, observei que houve
infiltração de água por longo tempo, com sério comprometimento dos eixos (horizontal e
vertical) e de suas engrenagens cônicas, por profunda oxidação.
Posterguei
a remota possibilidade de sacá-los e dediquei-me a retirar o eixo do volante.
Ele
assemelha-se a um “corpulento” pino, (compr. 70mm, diâmetro aprox. 13mm)
levemente excêntrico em sua metade, para permitir regulagem na distância entre
as engrenagens mães do acionamento.
Mas
o teimoso eixo negou-se a mexer um “mícron” sequer e constituiu um grande
obstáculo para continuidade. Por dois
dias, todos os procedimentos possíveis e usuais foram tentados em vão. Acostumado a velhos e teimosos sistemas
mecânicos, empreendi “terapias” mais agressivas. Realizei furos longitudinais no bloco, rentes
ao eixo e injetei desengripante. Apliquei impactos dinâmicos com punção em seu centro
interior, choques térmicos com maçarico a gás,...
Os
resultados negativos frustraram a continuidade e a primeira desistência passou
a ser possível, frustrando toda a intenção de ressuscitá-la.
Apenas no segundo dia, o obstinado eixo cedeu à nossa pertinácia. Inicialmente um décimo de nada, suficiente para o "arauto anjo do bem soas as trombetas". E, de ínfimo em ínfimo, ele deslizou, abandonando décadas na sua rígida morada, deslocando-se algumas insignificantes frações de milímetros, a cada dezena de robustas pancadas...
Com o ânimo revigorado, planejei a continuidade. O eixo saiu, contrariado, arrastando fragmentos do bloco.
Tentativas de remoção do eixo do volante |
Com o ânimo revigorado, planejei a continuidade. O eixo saiu, contrariado, arrastando fragmentos do bloco.
Lembro do que escrevi na Postagem 21:
(...)
As peças parecem manifestar um patente e curioso humor. Por vezes,
recusam-se a ser consertadas. Encravam seus parafusos, emperram suas
engrenagens, suas madeiras atraem térmitas cupins, rompem-se, deixam-se
cair... Outras vezes, ao contrário, oferecem-se emitindo sons rangidos,
reflexos de luz... Vivem seus instantes de agudas crises depressivas, ou
momentos de alegria e prazer, tentando aos seus modos, as mais
inacreditáveis demonstrações da centenária existência (...).
No sentido de pausar o estresse do extenuante capítulo, passei a dedicar-me à base de madeira.
Embora
não original, sua parte maior foi executada em peça única de madeira
nobre, que mereceu ser plenamente preservada. Estava rompida (quebrada)
na região frontal e possuía "inquilinos" residentes na lateral. São
"brocas da madeira" - pequenos besouros em fase larvária - cujos
orifícios foram limpos e preenchidos com cavilhas, solidarizadas com
adesivo vinílico.
Base rompida na parte frontal |
Dois dos quatro habitáculos das larvas de "broca da madeira" |
Ao
abrir sua parte traseira, uma insólita surpresa: estava afixada internamente
com dois pedaços de parafusos (uns 35 mm), destes utilizados para fixar
elementos metálicos, (originalmente com porcas rosqueadas) e sutilmente ali
introduzidos..
Trechos de parafusos usualmente utilizados para fixação metálica |
Suas partes, após limpas, foram
novamente encaixadas e solidarizadas com adesivos vinílicos apropriados. O conjunto recebeu sucessivos lixamentos,
aplicação de selador, lixa fina e enceramento.
Retornando ao bloco (parte
superior da máquina), concluímos pela absoluta inviabilidade de
reutilização. Seus dois eixos e
engrenagens estavam como fundidos, sem qualquer possibilidade de retirada.
O eixo seccionado para reutilização da engrenagem secundária |
Nos restauros, evitamos a
instalação de peças não pertencentes ao conjunto original.
E, como o bloco (carroceria) estava inutilizável,
a segunda possibilidade de desistência se fez presente e a decepção cobriu o intento.
Mas ainda antes de contatar a
proprietária para comunicar o desolador insucesso da empreitada, fui vasculhar na nossa reserva
técnica, onde encontrei uma Clemens Müller similar, que ali estava descartada
há 40 anos, tendo apenas o corpo e eixos superiores perfeitos.
Nossa ilustre doadora, após merecida limpeza |
Novamente o propósito do
possível êxito aplacou a renúncia e optamos pela persistência. Com a autorização da proprietária e alguns
ajustes, adaptamos naquela “carroceria” a parte mecânica superior possível de
resgatar da original.
Passamos a dedicar atenção ao
mecanismo inferior, cuja aparência era não menos lastimável. Mas, com penoso trabalho, teve todas as peças
retiradas, trabalhadas (desoxidadas, retorneadas, polidas, ajustadas,...) e
reinstaladas.
Além de firmemente solidarizadas por oxidação, havia alguns aracnídeos moradores |
O mancal excêntrico do eixo vertical, acionador da biela, contrapinos de
fixação, cursor da lançadeira, eixo de deslocamento, reguladores, fixadores,
biela dos dentes impelentes, molas, limitadores, parafusos (e roscas
retorneados), perfis de deslizamento, charneira cônica,... foram, um a um,
constituindo o complexo mecânico inferior, concluído e funcionando a
contento.
O mecanismo da fronte apresentava-se análogo ao sistema inferior em sua
patente inviabilidade. Mas com partes adaptadas e recebidas a partir da
doadora, consegui um razoável desempenho.
O eixo da agulha, solidamente emperrado, com sua abraçadeira rompida |
Muitas outras peças foram também retorneadas, polidas e acomodadas. A manopla
de acionamento, em louça branca, teve seu eixo e articulação restaurados,
permitindo ser dobrável, para transporte ou guarda, como era
originalmente.
As hastes suportes de carretéis, parafusos de fixação do bloco, pinos
fixadores,... após desoxidação, limpeza, retorneados ou com suas roscas
refeitas. Assim como calcador (patinha), dentes impelentes, tampas da
lançadeira, carretilha e lançadeira, tiveram similar tratamento.
Alguns
retoques de pintura (quase imperceptíveis) foram realizados, sempre preservando
o aspecto estético de quando na época de sua atividade.
Optamos por uma agulha adaptada (torneada), considerando que as
específicas para a Clemens Müller são atualmente fabricadas na República Theca
e muito onerosas.
O autêntico emblema dourado também foi um regalo da doadora, já que o
anterior estava flagrantemente prejudicado.
A Clemens Muller renascida após árduo restauro |
Embora tenhamos casos de desistência por absoluta inviabilidade, este
será registrado como o restauro mais árduo de nossa história e,
paradoxalmente, que nos contemplou com o
gratificante final feliz.
A Clemens Muller, exibe sua imponência com sonoro dinamismo, para regozijo de todos os que sabem admirar sua centenária história, passada nas mãos dos tantos que a manusearam e que não mais pertencem ao nosso mundo terreno.
Nesta postagem, a nobre homenagem à Sra. Marta, proprietária da maquininha,
pela sua confiança em nossos humildes préstimos de restauro.
Darlou D'Arisbo