Nosso museu dispõe de oficina de restauro, cujos trabalhos por vezes são emoldurados por feliz nostalgia, como neste relato.
A arte do restauro excede ao mero trabalho reconstrutivo, visando
interromper o processo de deterioração de objeto que acompanhou alguma fase da
evolução humana. Além desta assertiva, o restauro torna
tangível algum importante passado histórico, alimentando a detalhada imaginação
reportada à época, com seu simbolismo e emoção.
Esta postagem, revestida de sentimento, reporta-se à história da construção de um simples e acanhado armário de madeira.
Um ano após o fim da segunda guerra, um jovem
militar, tendo concluído seu curso de sargento no Rio de Janeiro (na época,
capital federal), foi assumir uma estação de comunicações do exército, na
cidade litorânea de Torres, Rio Grande do Sul.
Comandando alguns soldados, submeteu-se às
condições precárias, com um pequeno gerador de energia elétrica, poço para
abastecimento de água e paradoxais imensos equipamentos de rádio transmissão
cedidos pelos aliados.
A pequena
Torres, no litoral norte do Rio Grande do Sul, na época
Mergulhado neste universo, em meses, e já considerado
autoridade na pequena urbe, casou com uma linda jovem de Porto Alegre.
Para abrandar a melancólica surpresa dela, acostumada às benesses sociais da
capital gaúcha, pôs-se ele mesmo a fabricar a própria mobília, limitada a um
fogão de tijolos, mesa, bancos, prateleiras, um berço para o primogênito a
caminho (autor desta postagem), etc. E, é claro, motivo do título, o pequeno
armário.
Construído com pedaços de descartadas caixas de
material do exército, utilizando ferramentas rudimentares e realizando
esmerados encaixes, embora com a limitada dimensionalidade do
material.
Componentes
de rádio, armas, munição, material de cozinha, etc... vinham devidamente
embalados em caixas semelhantes à da foto, as quais depois de descartadas, eram cuidadosamente desmontadas e serviram de elementos para a construção do citado
armário.
Paredes,
vistas e encaixes do armário, resistiram a setenta anos
Assim,
trabalhando nas horas vagas conseguiu construir também este pequeno armário, com cerca de
um metro de altura, oitenta centímetros de largura e trinta de
profundidade. Possui duas portas com
precisos encaixes em seus perímetros e lâmina esbelta central. Duas gavetas na parte superior. Como na pequena cidade não havia loja com
acessórios para mobília, ele executou os puxadores de madeira, de maneira
criativa e perfeita.
Estrutura interna (vigas) foi executada sob milimétricos encaixes (vista
externa). À direita: Interior
da parede ainda conserva a tonalidade original verde oliva das antigas embalagens bélicas.
Possuía
fechadura com chave (vista interna), já inoperante há várias décadas,
flagrantemente instalada por meios primários (serra fina).
A
operação de restauro procurou manter todas as características do histórico e vetusto móvel, incluindo suas marcas de idade, ferragens (parafusos,
pregos,..).
Porém,
alguns raros parafusos que tiveram parte de seu corpo destruído por oxidação, necessitaram
substituição por outros atuais similares e envelhecidos a fogo.
Poucas trincas, oriundas de natural
desidratação da madeira septuagenária, foram delicadamente preenchidas com
massa (pó de lixamento e selador), alguns pregos corroídos foram retirados e
substituídos por similares.
Após
conferir suas diagonais, coloquei o móvel em esquadro (isometria) com auxílio
de tensores oblíquos.
A idade do armário
promoveu algumas folgas nos encaixes, que foram delicadamente restaurados e solidarizados
com emulsão vinílica transparente, colocados sob prensa.
Em 1957, um puxador (manopla) da portinha foi quebrado, ocasião em que
este seu filho, com cerca de 10 anos de idade, substitui-o por um isolador elétrico
de louça, o que perdurou até o presente restauro.
Neste restauro foi executado um novo puxador, copiado milimetricamente dos existentes nas gavetas, com
madeira semelhante, afixado com parafusos tratados.
Um
lixamento leve (granulometria 220) retirou as imperfeições das várias camadas
de verniz existentes em todo o móvel, sem danificar a madeira, nem esconder as
preciosas marcas da idade.
Foi
aplicada uma fina camada de verniz (Copal) para proteger a madeira, evitando
alterar suas características originais.
Ao
admirar sua construção, em 1946, executada por um jovem, desconhecedor da arte
da marcenaria, imaginamos a dimensão de sua dedicação nesta nobre e árdua
empreitada.
Espero
que, com este especial restauro, mantendo seus sinais do tempo, sua presença
seja mantida por mais setenta anos, para que os filhos de meus netos tenham o
mesmo prazer em prolongar-lhe a vida.
Este
pequeno armário serve-me como exemplo de vida, ao vê-lo diariamente, relembro
os tantos bons momentos que tive com seu construtor (meu pai), soberbo integrante do time
celestial há quatro décadas.
Das tangíveis memórias de meu saudoso pai
Prof. Darlou D’Arisbo
Os tolos pensam que preço e valor são a mesma coisa. (autor desconhecido)
Prezado Darlou
ResponderExcluirCompetente restuaro e belissima historia! Parabens.
Um espetáculo, meu amigo, como sempre!
ResponderExcluirGrande abraço
Lique
Meu caro Darlou .
ResponderExcluirEste seu antigo armário sofreu uma bela intervenção de restauro,e você fez exatamente aquilo que digo a meus clientes: restaurar é manter o aspecto de antigo,mas bem conservado . Não é necessário pintar novamente ou trocar partes desnecessariamente . Apenas manter a originalidade .Parabéns , fez um belo trabalho!
Li novamente! Bela historia.
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