Nesta postagem, o Museu de Antigas Máquinas Manuais de Costurar (MAMC), declina do frio âmbito da interpretação ferramental e mecanicista, passando a navegar por um mar mais poético, entre as tangíveis falésias do conhecimento e os místicos e etéreos horizontes. Apenas uma tardia e adocicada pausa entre as tantas anteriores sóbrias publicações.
“É vedada a utilização de quaisquer informações aqui contidas, para fins lucrativos ou comerciais, sem autorização expressa de seu curador, sob pena de indenização judicial.”
Historicamente, o Museu de Antigas Máquinas Manuais de Costurar, iniciou como todos os acervos particulares: com uma peça, depois outra e mais outra...
Cinco décadas acervaram mais de um século
Hoje, com mais de duas centenas de máquinas de costurar, registrado no MinC, é um sólido banco de dados da evolução mecânica e integração social deste importantíssimo ferramental no desenvolvimento humano.
A tangibilidade da história mecânica
Neste acervo de antiguidades, tenho mais que a tangível apresentação de um dinâmico e exaustivo trabalho em centenas de históricas peças: uma dedicação insistente de mais de meio século, no tempo que justificou grande parte de minha própria existência.
Mais de um século se faz presente
Significa-me algo como a eternidade. A qual, como a continuidade da imagem presente daqueles notáveis humanos, agora já etéreos, desde os que projetaram e construiram, até os que tanto manipularam tais objetos. Suas vivas mãos, seus músculos e pele, marcaram e gastaram os rígidos materiais que os compõem. Encontraremos ainda restos de suas mãos nos botões e manoplas das máquinas de costurar, escrever, moer,...
Um relato atual do pretérito exposto
E também elas peças, parecem manifestar um patente e curioso humor... Por vezes recusam-se a serem consertadas. Encravam seus parafusos, emperram suas engrenagens, suas madeiras atraem térmitas cupins, rompem-se, deixam-se cair... Outras vezes, ao contrário, oferecem-se emitindo sons rangidos, reflexos de luz,... Vivem seus instantes de agudas crises depressivas, ou momentos de alegria e prazer, tentando aos seus modos, as mais inacreditáveis demonstrações de existência.
Sonoramente, rompem-se marcando suas presenças
Sinto nelas, as presenças de seus passados usuários, em constante e silenciosa miragem. Descem dos céus, por talvez saudades de seus caseiros objetos, no silêncio das noites escuras, e vem aqui costurar suas vestes de nada…
...ou soprar as vagas brasas dos frios ferros de passar, moer fantasiosos grãos de café torrado, fazer quirera de milho para alimentar pintos ausentes.
Pé ante pé, silenciosamente na madrugada fria, chega o Major, meu saudoso pai. Em augusto segredo, sem o menor ruído e com muita delicadeza, toma a sua antiga e reluzente espada, desembainha-a e afaga-a como a um manhoso gato. Lustra-a e, satisfeita a saudade, guarda-a no lugar. Algumas vezes esquece-a sobre a mesa, distraído a observar, na miscelânea da parede, o relógio da vida de alfaiate, de seu pai.
Os tempos dos Ford T, Melindrosas, Einstein…
Distraídos, quiçá como eram em vida, por vezes marcam suas estadas: dão corda nos relógios de parede, esquecem armários abertos, mudam coisas de lugar...
Outras vezes, reúnem-se ao coincidente acaso, várias fantasmagóricas criaturas. Descem e voltam ao nosso mundo para contar causos, lembrar histórias em graves sussurros e dissimulados sorrisos, em efêmeras e merecidas ausências celestes. Ou até, em negligente ousadia, correndo o risco de flagrados serem, ao me acordar por um ruído, beijam os meus sonhos, no adormecido filho vivo.
Uma manifesta consagração divina
Abençoam os “sonos” da vida e, sem rufar de asas, voltam contentes ao mesmo celestial silêncio dos céus.
Enfim, são eles os proprietários. Eu, apenas efêmero depositário e fiel guardião.
Eles continuam donos perpétuos de suas coisas. Sempre usufruiram seus estimados objetos, seus pertences... Sempre viverão suas peças. E eu os vejo nelas.
“Diariamente, praticarei o bem, em toda a sua extensão e por apenas um dia. Afinal, eu me desanimaria se pensasse em praticá-lo por toda a minha vida.” (13º Mandamento da Serenidade)
(Darlou D’Arisbo / excertos das memórias históricas / 22 de março de 1986)
Surpreendentemente lindo. Revi aí meus avós, já em seus sonos e nos meus sonhos eternos, e meus pais, que ainda me norteiam a serenidade e guiam meus passos.
ResponderExcluir"... peças. Por vezes recusam-se a serem consertadas. Encravam seus parafusos, emperram suas engrenagens, suas madeiras atraem térmitas cupins, rompem-se, deixam-se cair... "
ResponderExcluirO Darlou externa com a sua tradicional forma parnasiana o que ocorre com o dia-a-dia de um atilado restaurador como ele.
De fato, há vezes que, como numa conspiração eletro e mecânica, nada se acerta e, quando avança, o faz em sentido contrário: acaba o dia e o aparelho...pior do que estava !
No meu caso, o restauro de rádios muito antigos e valvulados, há vezes e fatos que levam a pensar em entes imateriais, como se duendes viessem testar a capacidade maior de um restaurador, dita num lema que levamos ao extremo.
Se o dia foi ruim, amanhã poderá ser pior (!). Porém, a restauração será feita e com absoluto sucesso. Jamais desistir !
Que texto bacana! Mostra uma sensibilidade impressionante e até me emocionei pensando como você, que nós, que gostamos de antiguidades, somos apenas cuidadores daqueles objetos.
ResponderExcluirA imagem dos antigos donos voltando a tocá-los, manuseá-los no silêncio da noite, me tocou muito.
Não é a toa que você é tão dedicado ao que faz: tem amor e entende o valor das coisas.
Obrigada pela leitura tão agradável proporcionada.
Abçs
Conheci seu blog hoje. Estou impressionada e feliz com tantas informações detalhadas. Salvei do ferro velho uma long life verde. Ainda não a usei, pois os dentes impelentes estão enferrujados, o tensor da agulha está incompleto e a peça onde passa a linha ao lado do tensor também. Acho um sacrilégio comprar outra máquina para usar como doadora de peças, então fico na vontade de costurar nela.
ResponderExcluirVou continuar a ler e me informar aqui neste blog. Estás a fazer um excelente trabalho.
Parabéns pelo trabalho que realizam. tenho uma máquina de 1874 e gostaria de saber como entro em contato com vocês. Quero restaurar.
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