terça-feira, 5 de julho de 2022

Sua majestade “O Parafuso” - Publicação 37

Tudo tem parafusos. Ouvimos até chacotas como "ele tem um parafuso a menos".   

Mas a trivialidade do parafuso incita um raciocínio sobre a sua essência. Assim, iniciaremos com uma breve história sobre sua origem.  

Atribui-se ao filósofo e cientista grego Arquitas de Taranto, lá pelo ano 400 a.C., a sua invenção, cuja rosca - em espiral - como é até hoje, era útil para prensar azeitonas e uvas, produzindo azeite e vinho.

O parafuso de Arquimedes

Em meados de 250 a.C., o conhecido Arquimedes aplicou tais princípios para elevação de água, sistema que Leonardo da Vinci tanto utilizou em seus inventos, no século XV.

Na época do Renascimento, a evolução mecânica influiu também na instrumentação cirúrgica, como a tesoura removedora com eixo diretriz, linhas de corte externas e regulagem da abertura por parafuso. Observe-se que era inserida fechada.

Tesoura removedora (anos 1500) com eixo diretriz

A grande evolução do parafuso ocorreu no último século e, para desalento dos restauradores, os antigos padrões (dimensões, roscas, passos, ângulos, cabeças) não são compatíveis com os atuais.

Assim, ao desmontar uma máquina, é importante preservar seus parafusos. Porem, quando estão corroídos ou até solidarizados na peça, acomodados por muitas décadas e submetidos às agruras climáticas, umidade, falta de manutenção..., a simples tarefa de extração pode transformar-se em irremediável adversidade, com iminente risco de malogro no restauro.

Em nossas quatro décadas de dedicação ao restauro de antigas máquinas de costurar manuais, foram inúmeros casos em que os malfadados e teimosos parafusos negaram-se a sair.

São aplicados desengripantes, chaves de fenda de impacto, alicates de pressão (se há cabeça aparente), choques dinâmicos nos flancos... com repetidas sequências diárias. Obviamente as centenárias máquinas possuem dezenas de parafusos em situação equivalente. 


Normalmente eles possuem cabeça cilíndrica e fenda diametral. E, como regularmente são embutidos (à esquerda), a dificuldade para extraí-los fica extraordinária.

Em alguns casos é necessário utilizar talhadeira cega, com impactos na lateral da fenda, sentido anti-horário, ação que pode comprometer a fenda ou a cabeça, inutilizando o parafuso, mesmo extraído.

Quando o sucesso se faz presente, após diversas e longas batalhas, a tal pecinha - mesmo inutilizável - significa um troféu, uma vitória decorrente do árduo trabalho em removê-la. Por segurança, sempre devemos usar EPIs compatíveis com os riscos. 

O difícil encontro de similar entre os descartados


Caso ocorra êxito na retirada, ainda que inutilizado o parafuso, mas preservada a rosca, busca-se um similar no estoque de parafusos descartados. Nesta “loteria” é raro encontrar um idêntico. Em caso positivo, conferidas a rosca e a cabeça análogas ao descartado, o procedimento será limitado a adaptá-lo, cortando no comprimento, retirando rebarbas do corte na esmerilhadeira e na escova metálica rotativa.

Se necessário, limpamos ou aumentamos a fenda com uma lâmina de serra para metais (melhor as de 32 dentes por polegada).

Adaptando o comprimento e retirando rebarbas da fenda

Caso for difícil retirá-lo, as alternativas mais radicais e penosas são duas: a primeira, de seccionar sua cabeça (se saliente) com disco de corte. Assim ficaria mais fácil soltar a peça que ele prendia e torcer o toco aparente.

E, se ainda não houver êxito e o parafuso negar-se a sair (principalmente embutidos ou com cabeça cônica), a segunda tentativa é de aplicar a furadeira e perfurá-lo com broca de aço duro, remover os restos do orifício e refazer nova rosca, com diâmetro pouco maior e com rosca atual. Esta alternativa é válida nas ocorrências de quebra do corpo do parafuso dentro da peça. 


Perfurando e executando nova rosca

Trata-se de um procedimento arriscado, pois o aço do bloco do parafuso é normalmente mais duro do que a peça em que ele está inserido, o que provoca o deslizamento da broca para o terreno mais macio (da peça), que poderá ser comprometida.


Cabeça e rosca atuais

É necessário escolher um parafuso com a cabeça “parecida” com a original, embora a rosca seja minimamente de maior diâmetro e não tenha o mesmo dimensionamento helicoidal, nem sequer a cor do original ou a aparência antiga.

O recurso final é o de converter o novo exemplar num velho perfeito (sem esperar décadas...). Inicialmente executa-se a rosca na peça, como na imagem anterior). Para tanto, utiliza-se um “macho” de abrir roscas, com muito cuidado para não quebrar a peça e nem partir a ferramenta. Lembre-se que o parafuso tipo Phillips só foi comercializado a partir dos anos 40, ou seja, seria uma incongruência utilizar tal cabeça em peça antiga.


Adaptando as dimensões da cabeça

A etapa seguinte é a adaptação. Preferimos tornear a cabeça do parafuso com a lima e furadeira, até ficar no diâmetro do antigo, caso deva continuar cilíndrica, porém menor.

Moldado o parafuso às dimensões de seu habitáculo (com paquímetro), passa-se às operações anteriormente citadas (corte, polimento) e depois a “maquiagem” para torná-lo envelhecido.

O procedimento de envelhecimento que utilizamos lembra a têmpera dos ferreiros: pôr o parafuso numa chama até ficar ao rubro e depois mergulhá-lo em óleo preto, por exemplo um refugo de cárter automotivo. Tal ação merece cuidado, pois pode produzir chama e queimadura


Processo rudimentar de envelhecimento
 
Finalmente, a colocação do parafuso em seu local definitivo merece muita atenção. Deverá ser lubrificado e ter um aperto suficiente para fixação das partes (nem frouxo, nem arrochado). Ali ele poderá ficar alojado, quiçá, por outras tantas décadas, até que outro restaurador tenha similar ou melhor devotamento à preservação daquela máquina. 


"O sucesso é proporcional ao quadrado da dificuldade" (DD1995)

Esta é a singela opinião, alicerçada em décadas de restauro. Está aberta a críticas, ideias ou comentários que possam trazer melhores condições de preservar estes objetos históricos, no intuito de mantê-los tangíveis aos conhecimentos das gerações que nos sucederão. 


Preito de agradecimento:

Em algumas publicações expressamos homenagem a raras pessoas que, consagraram boa parte de suas vidas à nobre causa do restauro e preservação de instrumentos vitais à evolução da humanidade. Na presente publicação rendo homenagem ao ilustre Sr. Daltro D’Arisbo (Museu do Rádio de Porto Alegre), engenheiro, historiador e outros tantos ofícios. Tais méritos constituem o grande orgulho para mim em tê-lo como estimado irmão. Desejamos que o Supremo Criador continue a iluminar as alamedas de sua próspera existência.

Darlou D'Arisbo

Museu de Antigas Máquinas Manuais de Costurar


3 comentários:

  1. Fico admirando com as belas palavras para descrever tão importante e singelo item da engenharia, e que pela sua simplicidade hoje nos passa despercebido a sua importância.
    Obrigado por comentar os métodos de restauração envolvendo parafusos, certamente será muito útil para iniciantes em restauração, já que é difícil encontrar informações de quem tem realmente conhecimento e prática desta área.
    Parabéns.

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  2. Fico admirando com as belas palavras para descrever tão importante e singelo item da engenharia, e que pela sua simplicidade hoje nos passa despercebido a sua importância.
    Obrigado por comentar os métodos de restauração envolvendo parafusos, certamente será muito útil para iniciantes em restauração, já que é difícil encontrar informações de quem tem realmente conhecimento e prática desta área.
    Parabéns.

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