sábado, 21 de outubro de 2017

Restauro da Rhenania 1880 - publicação 28

Obs.: para ampliar as fotos, basta clicar nelas.

Ao visitar um dileto amigo, recebemos dele um presente magnífico, de valor histórico inestimável, objeto de causar estimulada emoção: uma máquina de costurar marca Rhenania, centenária, fabricada na Alemanha, entre 1870 e 1900 e adquirida por ele em Florianópolis - SC. Estava bastante completa, aparentando pouca ou nenhuma alteração, não obstante sua avançadíssima idade. Enfim, um digno objeto com todas as qualidades para integrar o acervo de nosso museu (MAMC).

Rhenania 1880 recebida

As máquinas de costurar Rhenania, diferentemente de outras produzidas sempre pela mesma indústria base, foram executadas (com pequenas alterações), por vários fabricantes alemães, entre 1870 e 1900 e vendidas com marcas diferentes, incluindo “Rhenania, Humboldt e outras. Várias informações revelam que a fábrica inicial era a Tittel e Nies, depois Richard e Adolf Knoch AG, situadas em Saalfeld, no distrito de Saalfeld-Rudolstadt, estado da Turíngia, Alemanha.

Outra Rhenania que possuimos em nosso acervo

Posteriormente, foi fabricada pela Mestwerdt Co. em Hamburg; Conrad Bügler em Plauen; Grimme & Natalis e R. Lehnmann, formerley Baach & Klie em Braunschweig e Junker & Ruh AG em Karlsruhe.

A máquina foi um sucesso mecânico e comercial, o que motivou a utilização de seu projeto (e patentes) pelas várias indústrias. Ainda hoje (2017) encontramos máquinas Rhenania funcionando em várias partes do mundo.

Manual de instruções (em Francês) e propaganda alemã (1890)

Realizamos uma criteriosa análise em nossa Rhenania e, justamente por estar completa, concluímos que era merecedora de um minucioso restauro.
Ela havia sido pintada de preto, por spray ou pistola e, obviamente, a tinta havia permeado por todas as peças fixas ou móveis, engrenagens, alavancas, eixos,... Seu corpo superior, mesa e base apresentavam várias camadas de tinta, cobrindo todos seus detalhes em baixo relevo.
Procedemos então a desmontagem total de suas partes. Alguns parafusos estavam encravados e foram retirados com dificuldade, utilizando choques térmicos e dinâmicos, alternadamente.
Vários necessitaram troca e roscas (fêmeas) refeitas. Para tal, utilizamos procedimento de envelhecimento térmico e cabeça refeita (cilíndrica ou cônica).

Mecanismo inferior em início de desmontagem

Não possuía a mola cônica do tensor da linha, mas foi encontrada similar numa caixa de peças antigas.
Os eixos foram retirados e receberam leve torneamento (polimento) para retirar restos de tinta, antiga lubrificação e poeiras agregadas. As diminutas folgas causaram admiração, insignificantes ante o longo processo de trabalho que deve ter sido submetida por mais de uma centena de anos.
 
Camadas de tinta limitavam seu movimento

A cada parte desmontada, surpreendemo-nos com a excelência da manutenção que deve ter sido submetida, pois os eixos e dentes das engrenagens estavam íntegros, graças à perfeita lubrificação utilizada.
A plaqueta envoltória dos dentes impelentes estava com um pequeno perfil quebrado, com difícil recuperação, devido às diminutas dimensões. Mas a loteria celeste nos premiou com uma peça íntegra, graças a uma máquina similar de nossa reserva técnica. Algo como encontrar um trevo de quatro folhas no fundo do oceano.

Plaqueta dos dentes impelentes colocada

Vários recipientes de peças foram dispostos, com o devido cuidado para evitar confusão, numerados e descritos.
Algumas peças foram mergulhadas em solventes para facilitar posterior limpeza. Outras encaminhadas ao torno e escova metálica circular. Uma micro retífica realizou o trabalho mais delicado utilizando variadas ponteiras de cerdas metálicas. Os dentes impelentes foram restaurados com micro limas.
O volante de acionamento, após a meticulosa limpeza (abrasão,...) foi tratado com fosfatizante e após, duas camadas de esmalte sintético preto.
Semelhante tratamento foi executado no pé metálico, com cuidado para manter suas belas decorações em baixo relevo.
A pequena mola interna da manopla, seriamente comprometida, impedia dobrá-la. Um minucioso aparato foi desenvolvido para inseri-la e, após várias molas e pinos quebrados, certamente com ajuda de alguns invisíveis elfos escandinavos, em algumas horas de procedimento homeopático obtiveram pleno êxito.
Originalmente, estas máquinas possuíam um receptáculo inferior (bacia) que coletava qualquer pingo de lubrificante, evitando manchar o móvel em que estariam apoiadas. Como esta já não dispunha da proteção, dispomo-nos a construir uma, adaptada de outra máquina doadora de nossa reserva.
Com parafusos envelhecidos e roscas refeitas, a adaptação serviu tal uma luva!

Recipiente apropriado para receber possíveis pingos de lubrificante

Este modelo de máquina não possuía a pequena alavanca esticadora do fio, incorporada nas fabricadas após o início do século XX. Nestas, o estiramento da linha, a cada ponto, era realizado na parte superior do eixo da agulha, através de acoplamento de discos regulados por mola e parafuso.
Porém, o parafuso estava faltante, com parte quebrada no interior do eixo. Com razoável dificuldade conseguimos refurar o remanescente, retirar os fragmentos e realizar nova rosca. Depois, construir novo parafuso, a partir de um cabeça semi-esférica, pois na época os parafusos tinham cabeça cilíndrica. Os discos foram feitos com pequenas arruelas côncavas.
O envelhecimento deste conjunto, foi realizado individualmente, a fogo (ao rubro), depois mergulhado em óleo. A mola, construída a frio, a partir de fino arame de aço enrolado.
O sistema mecânico da parte inferior estava íntegro, apenas apresentando sujidades e camadas de pintura em partes móveis, impedindo seu perfeito movimento. A limpeza individual das partes, com posterior polimento permitiu funcionamento harmônico.
Um parafuso para madeira colocado indevidamente no cursor dos dentes impelentes, destoava da elogiada perfeição do conjunto. Um apropriado pino foi confeccionado e colocado no lugar do intruso e inconveniente parafuso.

Pino colocado no cursor dos dentes impelentes

O rebobinador (preenchedor das carretilhas) estava completo, porém com várias camadas de tinta, o que limitava seu funcionamento. Após desmontagem, limpeza e montagem, ficou perfeito.
Poucas peças foram refeitas ou adaptadas, embora todas as existentes mereceram trabalho específico e individual, sempre resguardando a premissa de manter a originalidade da máquina.
Acredito que a mais extenuante tarefa foi a de retirar o parafuso (sem cabeça) fixador do eixo excêntrico do volante de acionamento. Estava seriamente oxidado, de tal forma incorporado à rosca da mesa, que exigiu dezenas de procedimentos para sua saída. Inicialmente pancadas dinâmicas lateralizadas na fenda, sempre sob spray de desengripante. Intercalamos choques térmicos, com isolamento por água fria no restante da mesa, evitando “queimar” a pintura original e correndo o risco de trinca térmica. Foram três dias de tentativas, até sua rendição, embora sua parte superior necessitasse de novo desbaste e fenda. Mas ficou bom e funcional. 

Parafuso fixador do eixo excêntrico antes de ser removido

A manopla, de louça branca, possuía uma pequena quebradura lateral, aparentemente recente. Concluímos que o preenchimento com resina macularia sua originalidade funcional. Optamos por permutá-la por outra idêntica e perfeita de máquina similar e doadora de peças.
Vários outros procedimentos não foram aqui mencionados, pela sua singeleza ou óbvia decorrência. Ou até por esquecimento, pois as ações de restauro exigem compenetração total e não harmoniza com preenchimento de relatório.
Sempre destacamos a indispensável delicadeza em todas as etapas, utilizando ferramentas apropriadas e esforços compatíveis, pois a constituição das peças, em aço de baixa resistência, é facilmente quebradiça à impactos.
Esteticamente, recebeu pintura total apenas no volante de acionamento e na base metálica, cujas demãos existentes cobriam oxidações e sujidades. No corpo, após limpeza geral e fosfatização nas falhas, recebeu retoques de esmalte sintético preto.
Ressaltamos o curioso detalhe de uma delicada inscrição em baixo relevo (broca de dentista?) em sua mesa com letras maiúsculas levemente decoradas “RHENANIA”, o que também contribuiu para evitar pintura geral.
Foi instalado um antigo carretel de madeira, perfeito, completo e original, com linha branca e agulha, compondo a nobre imagem de sua áurea época de funcionamento.
Após restaurada, a condição geral da máquina demonstrou ser satisfatória, sem falhas de funcionamento ou folgas exageradas, apresentando-se tal como em sua época de atividade.

Enfim, o restauro desta centenária Rhenania, alicerçou-se em dois dignos motivos:

Em primeiro lugar a preservação deste fantástico e épico instrumento mecânico, responsável pela alteração estética da humanidade, através da confecção da indumentária e consequente origem da emancipação da mulher.

Em segundo e não menos importante ao fato, o emocionado reconhecimento à atitude do doador, em regalar-me com tal inestimável presente, que será assentado em destacado e nobre local do acervo de nosso Museu de Antigas Máquinas Manuais de Costurar (MAMC). Nosso patente preito de gratidão ao Valdecir Giotto pela magnífica doação.

O restauro excede a mera cirurgia estética, mas sim incorpora muito suor (até emocionadas lágrimas) em longa, complexa e funcional dedicação e experiência.

Prof. Darlou D’Arisbo


quinta-feira, 14 de setembro de 2017

A hermética sociedade dos cupins – Publicação 27


                                                                                  (Terror dos colecionadores e restauradores)

Embora eu já tenha publicado algo a respeito, graças aos vários questionamentos, atualizo informações sobre o importante tema.

Os cupins (térmitas) são insetos que abundam nos trópicos, alimentando-se de celulose (C6H10O5), constituinte das paredes das células vegetais de madeira seca.
Entomologicamente são denominados termitídeos (Cryptotermes brevis), com cerca de 1.000 espécies conhecidas (no Brasil umas 200) e constituem importantes pragas urbanas, pois danificam o madeiramento de construção, móveis, livros,...
 
Não devemos confundir com os cupins subterrâneos (Coptotermes havilandi), espécie que habita terrenos, formando montículos e causando prejuízos em pastagens e lavouras.
Além daqueles térmitas, também as brocas (larvas) atacam a madeira. Estas, diferenciam dos cupins da madeira pela produção de resíduos com a aparência de pó (não grânulos) e por construírem túneis curtos e de maior diâmetro. As brocas são larvas de besouros (não adultos), cujas fêmeas após o acasalamento perfuram a madeira e ali põem os ovos. Atingem a fase adulta em meses (alguns demoram anos).

Broca da madeira (gentileza dddrin)

Nos Estados Unidos e Canadá (onde a maioria das residências é de madeira), uma pesquisa concluiu que uma colônia de cupins, com milhões de indivíduos, pode consumir 360 gramas de madeira por dia. São capazes de destruir um vigamento de telhado em poucas semanas, causando desabamentos (incêndios decorrentes) e destruição de móveis, livros,...

Cupim temporariamente alado (siriri ou aleluia)

A existência de grânulos fecais (fezes de cupins) junto aos móveis, portas e batentes, confirmam a infestação destes, embora esta deposição externa possa ocorrer somente após vários anos de ocupação. É difícil avaliar o tamanho de uma infestação, pois seus túneis sempre nos orientam às conclusões erradas e os seus dejetos podem ser armazenados por muito tempo sem tornarem-se visíveis.

Embora os inseticidas matem os cupins, é comprovadamente impossível que estes produtos (mesmo gases) percorram os estratégicos labirintos, muitos bloqueados por paredes de cera.
A sua alimentação é a celulose, encontrada em qualquer material que a contenha (livros, madeira, carpetes, papel de parede, móveis, etc.). Algumas madeiras são naturalmente inatacáveis por cupins, tais como: peroba, jacarandá, pau ferro, braúna, sucupira, copaíba, maçaranduba,...

Ainda que os cupins não representem, diretamente, perigo para nossa saúde, pois nenhuma patologia possui relação direta com estes insetos, esta praga está cada vez mais presente.

As castas da sociedade

Infelizmente (a defesa dos cupins), normalmente constatamos a presença da praga quando os estragos já são irreversíveis e, na falta de informações abalizadas e científicas, a crendice popular leva a combate ineficaz, agravando o problema.

Os cupins mantem uma sociedade perfeita e organizada em castas, tendo uma rainha que comanda a reprodução, soldados que se encarregam de defesa, operários que buscam alimentação e por fim os siriris que, possuindo asas, revoam para formarem novas colônias, perpetuando assim a espécie.

A rainha, que pode viver por décadas, possui a função específica de acasalar e ovopositar. Os outros, exclusivos, tratam da sua alimentação e segurança. Milhares de ovos, com cerca de 3mm cada, são produzidos por ela a cada ano e ficam incubados por duas semanas até nascer as ninfas, que se alimentam de resíduos regurgitados por operários que as cuidam e tratam.

Rainha prestes a ovopositar

Após diversos estágios de crescimento, geneticamente programados, assumem a determinada e exclusiva posição nas castas.

Os reprodutores adultos desenvolvem órgãos sexuais, asas e os seus olhos tornam-se funcionais. Em determinado momento, deixam a colônia em enxameamento, simultaneamente, nos meses mais quentes. Como estes tem dificuldade para percorrer os túneis, até a saída, operários os “empurram” até a saída.

Após encontrar um local propício, normalmente próximo, perdem as asas e instalam-se. A melhor fêmea torna-se rainha, é fecundada e iniciam ali nova colônia, cujos ovos formarão ninfas, soldados, operários e reprodutores.


Enxameamento alado
 
Os operários, estéreis e cegos, são ávidos por celulose, alimento básico para toda a colônia. Alguns também atuam na segurança e alimentação da rainha, ovos e ninfas. Trabalham 24 horas por dia, buscando alimentos e perfurando o interior da madeira, construindo galerias. Para melhor segurança, criam labirintos com câmaras, depósitos de dejetos e bloqueiam caminhos com paredes de cera, tornando-os inacessíveis para gases inseticidas. .

Os soldados, ao final do estágio de crescimento, adquirem uma blindagem na cabeça e fortes mandíbulas. Aguerridos, são preparados para defender a colônia dos inimigos, especialmente das formigas.


Térmitas operários

Conclusão:
Os ataques à madeira são aniquiladores, destruindo portas, mobílias e peças constituídas com o material. Infelizmente, as infestações são notadas após vários anos da instalação inicial, quando já é difícil combater a praga instalada ou recuperar a peça atingida. Como são lucífugos (não aparecem à luz), deslocam-se sorrateiramente nas galerias cavadas.
Para saber de sua existência, podemos atentar a três fatores:

1. Observar as revoadas (parecem formigas com asas) nos meses quentes;

2. Notar a existência de seus resíduos fecais (minúsculos grãos secos <1mm), normalmente saídos de galerias já lotadas;
3. Perceber som “oco” ao bater em madeiras atacadas.

Saiba-se, porém, que estas lamentáveis constatações ocorrem após muitos anos de infestação, pois décadas podem transcorrer sem a confirmação da existência dos cupins, já instalados.
Muitos produtos são divulgados como cupinicidas exterminadores. Mas embora suas formulações sejam adequadas (pós, líquidos ou gases), torna-se impossível o contato com os cupins, devido aos citados bloqueios que eles constroem nos imensos e inacessíveis labirintos.
Às tais dificuldades, acrescente-se a “inteligência” construtiva e organização social deles; executando túneis, desviando orifícios ou encaixes, evitando atingir superfícies, para não deixar sinais visíveis. Ao abrir a madeira de algumas antiguidades, nós constatamos labirintos com bloqueios construídos por paredes de cera, para evitar comunicação de agentes inimigos.

Embora cegos e surdos, possuem sensores às frequencias da luz e do som, evitando proximidades que possam denunciá-los. E, os seus excrementos só são liberados ao exterior, muitos anos após a instalação, quando os depósitos internam não mais comportam.
Interior de tampo de máquina de costurar seriamente atacado 
por cupins e depois de restaurado

Evitam-se novas incursões, aplicando produtos líquidos (cupinicidas) sobre as superfícies, somente após a certeza de ainda não estarem infectadas.
 

O combate efetivo e satisfatório só ocorre quando alteradas suas condições mínimas de sobrevivência. E, como seus limites suportáveis de temperatura, situam-se entre os -5ºC e os 70ºC (cinco graus negativos e setenta graus positivos), dependendo das dimensões das peças, a colocação destas em forno (microondas é ótimo), por uma hora ou partes grandes em freezer (câmara frigorífica), por uma semana, são indicações com bons resultados comprovados.
Realizamos algumas experiências, colocando peças de madeira atacadas por cupins em câmaras frias (-18ºC) por cinco dias. Ao abrir as peças, constatamos curiosas aglomerações com centenas de térmitas soldados mortos, cobrindo em proteção a rainha e ninfas, na tentativa de preservar-lhes o calor necessário para sobrevivência.

Somente observados mais conhecimentos sobre esta perfeita sociedade e seus instintos de sobrevivência, poderemos obter sucesso no domínio desta praga.

Publico estas informações, após muito pesquisar sobre a sociedade dos cupins e com a intenção de alertar aos interessados na preservação e restauro de antiguidades.
  
Prof. Darlou D'Arisbo
restauro.antique@yahoo.com.br