quarta-feira, 29 de março de 2023

Schöne Deutsche Hundertjährige - Publicação 41

Em agosto de 2022, visitamos a pequena, bela e antiga cidade de Morretes, situada entre a Serra e o Litoral do Paraná, repleta de casarões preservados e restaurantes, que têm o saboroso barreado (carne cozida por 12 horas) como prato típico. Foi fundada em 1733, mas desde 1646 foi ocupada por mineradores e aventureiros, com a descoberta de jazidas de ouro na região.

Nos arredores da cidade, em aprazível pousada local, encontramos uma máquina de costurar Clemens Muller que, após perseverante “namoro”, logramos êxito e recebemos o apetrecho em doação. Fato que muito nos contentou.

Registro da entrega da Clemens Muller

Obviamente, a Clemens apresentava-se em lastimável estado. Estava emperrada, pintada de verde e, com uma horrível cicatriz na mesa metálica, decorrente de solda muito mal aplicada. Tal remendo se fez presente também em várias outras partes móveis da máquina, donde se concluiu que foi submetida a grave acidente de queda.

A máquina e sua feia cicatriz

Mesmo tendo verificado tal evidente imperfeição e imaginando as decorrentes, concentramo-nos na difícil desmontagem. Obviamente, seus eixos encravados, estariam também desalinhados, graças às soldagens desaprumadas. 

Cicatrizes comprometedoras em vários mecanismos

Desistimos de encaminhar a mesa e as peças remendadas para o exímio torneiro mecânico que refez a solda em outra máquina (vide publicação 40), pois o risco pelo insucesso seria muito alto e o valor exorbitante pelo longo, perigoso e difícil trabalho.
Optamos por tentar fazê-la funcionar, mesmo com as horríveis soldas, parecendo queloides em cirurgias mal cicatrizadas. 

Aos poucos foi sendo desmontada - MAMC
 
Neste critério adotado, fomos conseguindo retirar suas peças móveis, mesmo que várias inutilizadas pelo simples deslocamento.

A difícil busca por peças similares

Os componentes inaproveitáveis foram substituídos por outros, (garimpados semelhantes) oriundos de reserva técnica, embora carecendo de fatigantes ajustes por torneamento, esmerilhamento, lixamento,... Seu corpo teve tratamento abrasivo e químico para retirar a inapropriada coloração verde.

Brocamentos para retirada de restos de parafusos

Nos parafusos endiabrados, que rompem e se negam a desalojar, tornou-se necessário perfura-los e realizar novo rosqueamento. 

Execução de novas roscas

Rastreio do parafuso certo na miscelânea de inservíveis
 
Sempre que possível utiliza-se parafusos aproximadamente “semelhantes” aos originais, já que iguais (centenários !), evidentemente não mais existem. O trabalho de adaptação inclui busca, conferência de rosca, corte, torneamento (normalmente da cabeça), envelhecimento a fogo, e conferência. 
 
Torneamento artesanal das cabeças
 
Seccionamento no comprimento ideal

Aos poucos a máquina foi sendo montada, conciliando partes adaptadas, num grande quebra-cabeças tridimensional. E dentre os sucessíveis triunfos, vários retrocessos para novas investidas.
Após realinhamento de todas as peças móveis e devidamente alojadas em seu corpo, colocados seus acessórios e recuperada sua base de madeira, nosso vetusto objeto retomou forma. Foi pintada em esmalte sintético preto.

A Clemens Muller, resgatada sua altivez

Assim, restauramos mais uma Clemens Muller, que, embora sem continuar seu profícuo trabalho de quase um século, revela agora digna aposentadoria, numa postura heroica, como que apta a divulgar centenas de histórias de sua vida pregressa.

Afinal, eu concordo com as palavras da romancista, contista e cronista Heloisa Seixas: “As antiguidades possuem uma vida secreta”. 

 "Schöne Deutsche Hundertjährige" = Linda centenária alemã

Darlou D'Arisbo - MAMC


 





segunda-feira, 13 de março de 2023

Uma Clemens Muller ressuscitada - Publicação 40

Inicialmente desejamos penhorar nossso agradecimento aos 275.000 (até hoje) visitantes desta nossa modesta publicação, com leitores de muitas dezenas de paises. São estes que nos incentivam a continuar com esta diligente e contínua realização.

Assim posto, vamos à origem destes recentes fatos:

Pois sempre que estamos em Curitiba, aos domingos, visitamos a tradicional Feira do Largo da Ordem. Ali, em pleno centro histórico da cidade, são montadas mais de 300 barracas, oferecendo os mais variados produtos, desde alimentação, lembranças, artesanatos variados, livros, antiguidades, etc.

É uma caminhada agradável, colorida e proveitosa, que ocupa vários quarteirões e, no mínimo toda a manhã. Imagino ser difícil percorrê-la sem adquirir algo útil e memorável.

Parte da Feira do Largo da Ordem - Foto: Fabio Dias PC/PR

Numa tenda, encontramos uma antiga máquina de costurar, marca Clemens Muller, em péssimo estado. Analisando suas particularidades, observamos que deve ter sido fabricada no início do século passado. Estava muito oxidada (enferrrujada), com suas partes móveis encravadas e sem a parte inferior de apoio (madeira). 
Mesmo com tais flagrantes obstáculos, resolvemos por adquiri-la, após acertado o valor.
Retornamos à nossa cidade (Toledo PR) e, ao descarregá-la, notamos mais um aborrecimento: havia uma fissura (trinca) em sua estrutura superior. Justamente a importante parte que aloja o eixo de comando horizontal e sustenta o complexo conjunto de eixos verticais.

A comprometedora fissura - MAMC
Ainda que comprovada esta desagradável constatação, o que culminaria no fracasso da tentativa de restauro, iniciamos o desmonte da máquina.
As dificuldades decorrentes da oxidação encontradas, não surpreenderam, pois temos meio século de batalhas vencidas no restauro destas idosas.
Seus parafusos encravados quebram à menor tentativa de torsão, seus eixos estavam solidarizados por ferrugem, engrenagens com dentes quebrados, mancais enrijecidos por falta de lubrificação, etc. Obviamente a máquina esteve submetida a longas intempéries.

Retirada parte do mecanismo inferior - MAMC
Sistema interno da fronte encravado- MAMC
Mas nossa obstinação lutava contra a teimosia do conjunto. Muitas peças empenaram, outras quebraram ao serem retiradas. E, dias após dias, suas centenas de partes foram acondicionadas em potes, aguardando solução. Algumas foram descartadas e substituídas por doadoras (de outras máquinas similares rejeitadas), da reserva técnica.
Alguma peças em final de preparação - MAMC
Assim, todas foram submetidas a tratamentos abrasivos, químicos, torneamentos, etc. Redimensionadas e adaptadas para seus futuros posicionamentos.
Muitas peças e parafusos estavam solidarizados por ferrugem - MAMC
A citada estrutura superior, então já liberada das peças móveis, foi encaminhada a um suposto especialista em soldas, que a executou com péssima aparência e desalinhamento, tendo alteradas suas dimensões e impedindo a inserção do eixo horizontal.
E a tragédia final estava próxima; pois ao menor toque, a soldagem se desfez, apresentando sua expressa incúria profissional. O presumido técnico havia declarada sua incompetência naquele trabalho, pondo um fim a qualquer tentativa de recuperação. Renunciamos à exigência de reparação, pois ele que já havia exposto ali seus limites.
Rompida a execrável e frágil soldadura - MAMC
Observe-se que a constituição do corpo da máquina é de ferro fundido, com baixíssima resistência.  Este metal é uma liga metálica para fundição em temperatura mais baixa, comum aos objetos não submetidos a maiores esforços. Possui alto teor de carbono em sua composição, variando de 2,11% a 6,67%. Já o aço contém 0,01% a 2,10% de carbono, além de incluir outros elementos e têmperas térmicas.
Outra característica do ferro fundido é sua dificuldade de soldagem, pois o aquecimento desagrega sua composição, formando cementitas (Fe3C), com aparência de sólidas borbulhas (vesículas e vazios).

Vista interna da desastrosa solda - MAMC

Enfim, o fingido profissional havia se declarado competente e nossa confiança foi infrutífera. Resignamo-nos a transformar o possível restauro em mais uma peça descartada, limitada a ser doadora de suas entranhas. 
Porém, alguns dias após, uma tênue luz indicou um sobejo caminho: Um perito em soldas especiais (impossíveis) dispôs-se a executar a tarefa. Seria um trabalho quase inexecutável, pois, além de apenas soldar, necessitaria adicionar metal, realinhar vertical e horizontalmente. Uma empreitada de dias, intermitentemente, passo a passo, milimetricamente...
Acredito que os anjos ajudaram e o habilidoso técnico conseguiu bom intento. A soldadura não resultou linda, mas cumpriu perfeitamente suas finalidades mecânicas. Com intervalados lixamentos e emassamentos, conseguimos que a aparência melhorasse bastante.

A soldagem, já lixada e com emassamento - MAMC
 
Consertada a falha, com pintura parcial - MAMC

A disposição e o otimismo então incentivaram a continuar a tarefa: prosseguir com o restauro da máquina, adaptando e instalando suas peças nos devidos lugares, com suficiente precisão para permitir os movimentos necessários. Muitos parafusos tiveram seus habitáculos broqueados e torneados. Várias peças foram adaptadas, oriundas de doadoras, mas com aceitável sucesso.

Parafusos encravados sendo refurados - MAMC

Orifícios recebendo rosqueamento - MAMC

Executados novos parafusos - MAMC

A base de madeira foi executada, lixada e envernizada a partir de retalhos de mobiliário descartado, ajustada e permitindo encaixe suporte da máquina.
Base de madeira, suficiente para sua sustentação - MAMC

O corpo da máquina foi preparado e pintado com esmalte sintético preto, com aceitável aparência para integrar o acervo do museu. Afinal, sua história singular destaca-se sobre a mera estética.

Ressuscitada, a Clemens Muller em pose faceira - MAMC

Afinal, Clemens Muller, famosa indústria alemã, detentora da marca cujo vocábulo, originário do latim clássico, significa “clemência”. Algo como misericórdia, compaixão,... expressões que pareciam emanar desta antes abandonada nobre guerreira centenária.









 

  



 

sábado, 17 de setembro de 2022

Balança MANAJÓS - Publicação 39

Etimologia e Simbologia:

Balança é um vocábulo originário do latim, formado pela união das palavras bis (dois) e linx (prato) que significa "instrumento de dois pratos".

A literatura cristã cita que São Miguel (o arcanjo do julgamento), pesa a alma dos mortos numa balança nivelada, avaliando os atos dos homens quando em sua vida terrena

 

Arcanjo São Miguel

 Comumente as vemos como símbolo da Justiça, cuja balança da deusa grega Temis, definia o peso das razões de cada ser humano.

Balança é o símbolo do equilíbrio, ou de sua falta, entre as partes. Induz a encontrar a harmônica concordância entre diferentes elementos.

História da fabricação:

A Balança Manajós foi fabricada pelas indústrias Martins Ferreira, fundada no final do século 19, na Lapa, cidade de São Paulo. Grande indústria, com vários prédios e fundição de aço, no bairro da Lapa e no Brás
.
 

Indústria Martins Ferreira – anos 1920 (foto D. Nacimento)

Seu nome (Manajós) refere-se a um ramo do grupo de índios Tupinambás que habitavam regiões entre o litoral sul da Bahia e o Rio de Janeiro no século XVI.

Augusto Martins Ferreira

 

A indústria produziu uma grande variedade de produtos de aço, balanças, panelas, pregos, ferramentas, ... Um dos produtos mais vendidos era ferraduras para os cascos de cavalos, considerando a época em que a principal locomoção era de tração animal. Durante a Revolução Constitucionalista de 1932 a empresa produziu também capacetes e armas para os soldados.

 

Crianças empacotando pregos (1917), quando o trabalho infantil era permitido e 

fazia parte de sua evolução profissional e ética. (foto D. Nascimento)

Ferraduras, a relevante produção para o período. (foto D. Nascimento)

 
A minha balança Manajós:

Descobri esta balança, quebrada em quatro partes, lá por 1980. Estes poucos pedaços foram encontrados em locais diferentes de um mesmo “Ferro Velho”. Ficaram então acomodados em uma caixa, aguardando condições para reconstruí-la. Mas faltavam-lhe partes importantes e alguns elementos mais delicados já haviam sido retirados.

Cerca de 20 anos depois, após uma pré-limpeza, resolvi encaminhar as peças maiores a um soldador para tentar uni-las, mas como eram de aço doce (quebradiço), o serviço foi deplorável, com grossos e feios cordões de solda. Algumas partes ficaram desalinhadas e o conjunto incompleto e mutilado voltou para o depósito. Certamente um serviço mais especializado teria melhor êxito, porém continuaria incompleta e o investimento, impraticável. Assim, ficou sonegado por mais um bom tempo
.

Parte frontal após pré-limpeza inicial e mais uma vez guardada

 

Quarenta anos depois de adquirida:

Agora, em setembro de 2022, ao organizar a reserva técnica, decidi reconstruir a balança. Obviamente, sem a menor pretensão de caracterizar um restauro, apenas tentando preservar sua forma, restabelecendo sua centenária imagem, tão degradada pelos vândalos inconsequentes.
Por medida de segurança estrutural, mantive as soldas feitas disformes, reedificando a estrutura com perfis adaptados, solidarizados com rebites, parafusos ou até resinas bicomponentes (Durepoxi).
Seus pinos de articulação (B), com secção triangular para garantir melhor precisão, eram inseridos a quente nas partes móveis (A), apoiados na estrutura fixa (C). Por este motivo, impediram a desmontagem, exigindo radical corte com remoção e substituição por parafusos.

 

Esquema das articulações existentes


Tal tarefa foi dificultada pela dureza dos pinos, em aço “temperamental”. Assim, as brocas, ao encontrar tal rigidez, desviavam e quebravam. Após muitas tentativas e erros, as peças (oito) foram encaminhadas a um torneiro mecânico, o qual teve os mesmos dissabores, afirmando “nunca vi aço tão duro !” Enfim, após obstinada persistência, conseguimos executar orifícios no lugar dos teimosos pinos para inserção de parafusos.

Braços articulados: (A) ainda com o pino e (B) já removido

Articulações adaptadas com os parafusos, arruelas e porcas

Aos poucos, com persistência e tolerância, fui conciliando componentes invulgares ao conjunto, completando o arcabouço com razoável conformidade e semelhança, parecido com o original.
Sempre tive como firme propósito restaurar os objetos tornando-os com a maior fidelidade à sua originalidade, no esplendor de seus dias de glória, auge de atividade, e mantendo as marcas da idade. Mas a situação presente exigiu radicalidade na solução. Embora parcialmente amputada, voltaria a exibir uma aparência satisfatória.
Alguns pedaços adaptados de perfis metálicos foram sendo incorporados, assim como parafusos substituindo articulações, resinas preenchendo diferenças de encaixes, ..

 

O mostrador, após escovação e tratamento de fundo 

aguardando desmontagem, troca de vidros e 

nova agulha indicadora de nivelamento.

Embora muito danificada, corroída pela ferrugem, foi escovada no torno e submetida a aplicação de desoxidante. Apesar de não ser a cor original, para camuflar falhas e preenchimentos, foi aplicada pintura sintética de cor preta. Alguns detalhes em baixo relevo foram levemente preenchidos com resina e pintados em cor alumínio.
Um emblema metálico em baixo relevo com símbolo da empresa, encontrado entre os pequenos destroços, foi copiado em negativo e moldado em resina, coberto com filme de alumínio. Assim como tantas outras partes, sua estética deixa a desejar, mas acredito que atende ao propósito de mera aparência.
 
Concluída e exposta em nosso acervo
Finalmente, após uma semana de dedicação, entre diversos momentos com ameaças de desistência, num adverso mar de dissabores e sempre agravado pelas dimensões e teimosia nos encaixes, presumo ter conseguido recuperar a dignidade daquele centenário instrumento que foi utilizado por gerações, com precisão.
Esperamos que esta Manajós, ressurgida em pedaços das trevas da sucata e, após quatro longas décadas de espera, agora integra a nobre família das preservadas, sempre na intenção de que as futuras gerações, em seus sentidos fisiológicos (ver, tocar, ouvir,...) tenham a oportunidade de saciar sua curiosidade de maneira tangível, não apenas virtual. 

Gratidão: 

Inicialmente ao Supremo Criador, que oportunizou esta possibilidade e proporcionou-me condições de dedicar-me a tal tarefa.
Também aos 270.000 visitantes de nossas humildes publicações, oriundos dos mais recônditos locais do mundo. Eles encorajam nosso entusiasmo em continuar restaurando, preservando e acervando estas peças para o conhecimento dos que nos sucederão.
Finalmente, desejamos expressar nosso penhorado agradecimento ao jornalista e fotógrafo Douglas Nascimento, emérito pesquisador, presidente do Instituto São Paulo Antiga e membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo pela gentileza de permitir a utilização de suas oportunas imagens e elucidativas informações.

Prof. Darlou D'Arisbo