segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Sua Excelência: "O RESTAURO" - Publicação 43

Conforme a enciclopédia fundamental da língua portuguesa: Lello Universal (ed.1922): “Restauração, s.f. (do latim Restauratio): acto ou effeito de restaurar. Fazer voltar a antiga importância, ao seu original esplendor. Restabelecimento de uma dynastia no throno, que perdera, como a restauração de Portugal em 1640.”

O restauro é um longo, analítico, analógico e específico processo:

Analítico porque depende de estudo minucioso da peça, sua legitimidade, exame criterioso de suas partes, investigação de sua história, pesquisa física de seus componentes e funcionamento, composição de pigmentos, ligas metálicas e demais materiais.
Analógico, a buscar identificação e semelhanças a outras peças, em conjunto ou parciais, no contexto histórico e evolutivo, sejam relatos pesquisados ou fisicamente acervadas.
Específico porque avalia as características próprias da peça, considerando que dois objetos aparentemente iguais podem ter sofrido usos e agressões diferentes no curso do tempo, com histórias diferenciadas.
 

Uma máquina de costurar pode ser um patrimônio muito importante.

Assim, as antigas máquinas, quando submetidas às intempéries, podem ser corroídas pela umidade e oxidadas pela ação meteorológica. As peças internas podem também encravar-se pela agregação às demais. A omissão de perfeita manutenção e falta de limpeza e lubrificação de quando em uso também comprometem e dificultam a desmontagem e restauro das máquinas.

Já encontramos máquinas que foram soterradas

Considero RESTAURO como o conjunto de operações para interromper o processo de deterioração de um objeto que testemunhe a história humana, e reconstruí-lo, para estabelecer seu aspecto original de quando em funcionamento.

Qualquer material está sujeito a diversos agentes de deterioração de ordem química (gases nocivos da atmosfera poluída,...), física (variações de temperatura e umidade), biológica (ação de bactérias, fungos, cupins...) ou as citadas falhas de manutenção e de preservação.

No caso das máquinas de costurar, o descaso com peças antigas é manifesto; raridades jogadas em ferros-velhos, enferrujando, ou até propositadamente quebradas para diminuir seu volume. Soubemos de leigos que aplicam produtos cáusticos indiscriminadamente, ou pior, jatos de areia ou granalha, os quais corroem engrenagens e características da máquina.

Chegam-me em péssimo estado de conservação, sucateadas

Na aquisição da máquina (vale para outras peças) procuro descartar as que são oferecidas por elevados valores, com visível intenção pecuniária. É indispensável ter capacidade de avaliar a legitimidade do objeto e sua origem.

A corrosão dificulta, mas não compromete

Sempre, ao receber uma antiga máquina de costurar, vejo nela a necessidade de algum (ou total) restauro. Os piores casos NÃO são as que sofreram desgastes naturais pela ação do tempo, mas sim as que foram deturpadas; repintadas, adulteradas, por vezes com a intenção de ludibriar o comprador ou vendidas como peças “decorativas”. Há uma infinidade de “fábricas de antiguidades”, muitas com trapaceada aparência de originais.

Fronte de uma New Home, quando aberta, antes “linda na foto de venda”.

Felizmente, as centenárias máquinas de costurar são dificilmente falsificadas, considerando sua constituição original em aço de baixa resistência, com características de fragilidade e fácil decomposição por abrasividade quando comparada às ligas atuais, o que facilita a identificação.
Obviamente, a existência de partes de materiais recentes (plásticos, pigmentos,...) ou parafusos atuais condenam sua unicidade.

Recebida com uma fratura irremediável, agravada por uma soldadura execrável

Cada máquina (ou suas partes) revela características específicas de restauração. Procuro seguir um preceito em que analisa três aspectos básicos:
 
1. Autenticidade: se realmente trata-se de legítima, cuja origem é conferida por meio de busca em fontes de informação;
2. Preservação: seu desgaste natural pela utilização ao longo do tempo, deterioração, falha de manutenção;
3. Reversibilidade: possibilidade de recuperação de suas partes, restituição de funcionamento.

Analisados estes questionamentos, o propósito é de restaurá-la preservando suas marcas de utilização, ou seja, na medida do possível, preservar seu estado de quando em funcionamento. 

  Antigos manuais, como este de uma Howe 1870, são boas fontes informativas

 
Embora alguns restauradores recuperem as peças de maneira a passarem a apresentar estado de novas, tal quando fabricadas, meu particular objetivo embasa-se em relato histórico, permitindo que as máquinas de costurar demonstrem suas características de quando em sua plena utilização. 
 

Remendos antigos devem ser preservados, pois são páginas de sua existência

 
O hediondo “quelóide cicatricial” faz parte de sua história e foi preservado

Preliminarmente (antes de ações físicas), identifica-se (marca, número de série,..), sua história (a quem pertenceu, finalidade de utilização,..), informações complementares,...  Através da Internet pode-se conseguir antigos manuais ou fichas técnicas.
Clemens Muller quando recebida e depois de restaurada
 
As antigas máquinas de costurar eram valiosos bens de propriedade e uso notoriamente feminino.  E, embora aquelas damas desempenhassem com excelência as tais essenciais tarefas, observa-se que olvidavam as normas de manutenção e muitas peças apresentam desgastes específicos exagerados.
Lubrificavam algumas partes e negligenciavam outras, utilizavam óleos vegetais ou até gordura animal, claramente comprovados no processo de restauro.
Evidentemente, estas máquinas antigas, foram construídas em materiais resistentes e, justamente por isso, preservam-se por muitas décadas, mesmo sofrendo falhas de manutenção. 

Excepcional “Junker & Ruh” (acervo do autor)

  
Algumas características de preservação alimentam os relatos históricos específicos, como esta “Junker & Ruh”, adquirida em 1890 e passada da mãe para a filha mais velha, por várias gerações, sempre com a proibição de “outros mexerem”. Esta é uma rara exceção que me chegou em perfeito estado, sempre lubrificada a contento, funcionou exaustivamente por mais de um século! Seu restauro limitou-se à mera limpeza e redação histórica. 
 
 
Certificado de garantia, preservado por um século no interior da máquina
 

Inscrições importantes: Número de série e identificação do importador

Alguns sinais de uso caracterizam sua utilização no decorrer do tempo e merecem ser preservados como testemunha histórica de sua vida funcional, como já citado. Marcas de carbonização em peças de madeira, identificam incêndio; desgastes localizados definem formas de uso; restos de insetos ou pingos de velas indicam utilização noturna; pedaços de papel com informações numéricas em sua caixa inferior (valores, medidas,...); recortes de jornal da época, santinhos com orações, ... Enfim, são informações preciosas que enriquecem sua história e que também orientarão o seu restauro.

 Muitas bases de madeira necessitam recomposição

Como normalmente as máquinas chegam-me sem relatos (obtidas em feiras, ferro-velhos, permutas ou doações), algumas etapas de análise são comprometidas. Inicio com identificação e cuidadosa pré-limpeza (sem perder dados), com pincel para retirada de materiais soltos, depois com solventes leves: normalmente (na ordem); água morna, água com detergente, querosene,... Jamais utilizo produtos agressivos (ácidos ou cáusticos) e sempre são indispensáveis os EPIs (avental, luvas e óculos).
 
Após a confecção do parafuso, o processo de envelhecimento ao rubro e mergulhado em óleo

A desmontagem, habitualmente requer esforços e ferramentas específicas: morsa, chaves de fenda de impacto, alicates de pressão, micro pinças... Sempre com muito critério e cuidado, pois a constituição das peças, em aço de baixa resistência, é quebradiço à impactos. 

Execução de uma porca cônica para fixação da manopla
 
Importantíssimo é eleger uma ordem de desmontagem, assim como a guarda de seus componentes, pois qualquer desordem comprometerá a recomposição.
Observe-se que os parafusos de meio século não se assemelham aos atuais, pois suas roscas (passos, ângulos,...), assim como as “cabeças” não são comercializáveis hoje. E, caso necessário substitui-los por atuais, após o processo penoso de remoção, temos de refazer roscas na peça, adaptar sua cabeça (por torneamento ou lixamento) e “envelhecê-lo” para conferir-lhe semelhante idade da máquina.
 
As partes corroídas por oxidação exigem procedimento abrasivo (raspagem, lixamento,..), e aplicação de anticorrosivo fosfatizante e pintura protetora.


Agulhas  Made in Ceska Republika

As peças para reposição são raríssimas e onerosas, como estas agulhas importadas da República Theca, para máquina alemã. Quando possível reutiliza-se peças de alguma máquina descartada, situação quase impossível, pois sofriam alterações constantes em dimensionamento e configuração. 

E como os plásticos foram inventados após 1930 (baquelite em 1909), as partes não metálicas eram constituídas de louça (manoplas) ou madeira (bases). Por medida de economia, alguns fabricantes produziram bases e manoplas em madeira torneada. Deste modo, na ausência da manopla original, executo em madeira uma similar.

Epílogo:


Esta publicação pretendeu apresentar um singelo trabalho de restauro, limitado aos conhecimentos oriundos da experiência de quatro décadas e jamais cogitando comparar-me com os consagrados restauradores profissionais, aos quais tenho o absoluto respeito e consideração pelo emérito ofício desempenhado.

Nosso humilde acervo recebe raros visitantes, considerando não ser aberto ao público. Porém, recebemos com imensa satisfação a presença do Dr. Vladimir e esposa Dra. Olena (ucranianos), os quais demonstraram ímpar conhecimento e entendimento de nosso trabalho, cujas suas gentis palavras incentivam tal dedicação. A eles dedico esta publicação, desejando que a Paz Celestial continue abençoando os seus caminhos.


Pensamento do dia:


As palavras são como moedas: uma pode valer por muitas,
e muitas não valer por uma.
(Francisco de Quevedo)

 Prof. Eng. Darlou D’Arisbo