Em viagem entre Taquara e Porto Alegre - RS, visitei o Sr. Siegfried, um antiquário (também artesanato, floricultura, ... ), na rodovia, onde sempre encontro alguma máquina antiga.
Desta vez, resgatei uma, em deplorável estado. Certamente esteve submetida à intempéries por décadas. Além disso, com todo o mecanismo em adiantado estado de oxidação, as peças móveis estavam travadas, assim como se fundidas juntas.
Observei que, apesar da macabra aparência, estava completa (ou quase). Adquiri a peça para submeter-me ao inacreditável desafio de tentar recuperá-la.
Aparência deplorável
Mecanismo “encravado”
Dias depois, coloquei-a na bancada da oficina, prendi-a na morsa e tentei retirar os dois parafusos da fronte (cabeçote), após borrifá-los com desengripante. Um deles quebrou (o que era de se esperar), um mau presságio vaticinando a triste possibilidade de transformação em sucata.
Mas, induzido pelo meu incansável anjo da guarda, tentei a retirada do segundo parafuso, martelando uma esbelta talhadeira na lateral de sua fenda da cabeça, para forçá-lo a girar, mesmo comprometendo sua estrutura. Aparentou rodar um insignificante “micro-ângulo”.
A partir daí, o procedimento foi borrifá-lo novamente e apertá-lo, com uma potente chave de fenda, para que o desengripante penetre. Com muita dificuldade, ele obedeceu no curto movimento positivo e depois (força) no anti-horário. Ele saiu, mas a máquina gemeu. Ouvi dela, algo como um sussurro melancólico, uma esmorecida voz em súplica alemã: “mich’etten, mich retten, michr...” (salve-me,..)
Foi a mensagem suficiente para empenhar-me na desmontagem total.
Fronte aberta (cabeçote)
Semelhantes dificuldades sucederam-se nos dias seguintes, dedicados quase que integralmente ao intento de ressuscitá-la. Diversos parafusos foram quebrados, seus locais e restos refurados, roscas refeitas. Algumas engrenagens tiveram dentes quebrados pelo exaustivo torque aplicado, na ânsia de fazer mover.
Os eixos, solidarizados no bloco pela oxidação, tiveram sucessivos choques térmicos na tentativa de fazerem girar e serem retirados. Outras partes antes móveis, agora sofreram pesada agressão física para aceitarem o temporário divórcio.
Alguns teimosos e corroídos parafusos (cinza) e eixos (preto)
Parafusos fixadores de biela, ao lado de pequeno palito de fósforos
Mais uns dez dias de longas jornadas, com a oficina tomada por dezenas de ferramentas, vários recipientes contendo solventes específicos (ácido removedor (Remox), fosfatizante, querosene, desengripante,...) com peças mergulhadas (tal um buffet de sopas).
Com o lixeiro cheio de papéis-toalha imundos e luvas de procedimento rompidas, as mãos e dedos feridos, iniciei a montagem...
Algumas peças do cabeçote (fronte)
A decorrência axiomática então se fez presente: as peças desoxidadas (limpas) não mais encaixam! As engrenagens encolheram seus dentes, os mancais folgaram seus eixos, cames liberaram seus pinos, barras trapezoidais não deslizavam mais nos trilhos encolhidos,...
Mas, sempre que o manto do desânimo e do cansaço ameaçava tolher-me o devotamento, eu lembrava de seu derradeiro sussurro e assim, andava sempre mais um passo.
A adaptação de todas as peças mereceu um trabalho específico e exclusivo para cada uma. Algumas preenchidas, outras desbastadas, alterados encaixes, ângulos, roscas,...
Muitos parafusos foram refeitos e, como já citado, as roscas antigas são atualmente incompatíveis, assim como suas “cabeças”, seus “pescoços”, encaixes,...
Restaurando os dentes impelentes
Algumas peças foram “adaptadas”, retiradas de máquinas doadoras (sucatas), outras foram “inventadas” a partir de inusitados componentes, como o fixador da mesa metálica na base de madeira, construido com um pedaço de agulha veterinária, arruela vedante e a ponta de parafuso inoxidável, unidos com resina epóxi.
Fixador da base na mesa
A base de madeira não fugiu à regra do quebra cabeças, pois foi executada a partir de nove pedaços de diversas outras sucatas. Um bom “olho clínico” poderá identificar a colcha de retalhos, finalmente estruturada e funcional.
A raríssima e linda manopla de louça, também foi doação de outra moribunda.
Enfim, após muitas voltas de nossa Terra mãe, eis que surge, ao rufar dos tambores surdos e dos moucos clarins, a tão almejada e nobre rainha Clementina (do latim: “a pequena graciosa”).
Seu coração pulsa mais que o meu, gira solene, rompe o silêncio noturno num farfalhar metálico, quiçá por mais um século.
Imponente, majestosa faz pose, dilacera o protocolo e é ela o próprio cerimonial (Clemens Muller 111.993ª).
Darlou D’Arisbo – fevereiro de 2012
(Em homenagem ao amigo e incentivador Miguel Guggiana)
Espetacular . Isso é que se chama de restauração.Um quase milagre que devolve à vida um objeto absolutamente desgastado e alquebrado .Parabéns pelo esforço deprendido e pelo resultado obtido .
ResponderExcluirAbraços
Darlou, gostei muito do seu blog. Seria possível você disponibilizar um email para contato? Tenho uma Singer de pedal (poderia mandar fotos) que infelizmente não cabe mais na minha casa, mas eu queria dar a ela um bom futuro. Se você conhecesse outro apaixonado por essas máquinas próximo ao Rio de Janeiro, me facilitaria também. Aguardo alguma reposta por aqui, nos comentários. Um abraço.
ResponderExcluirOLA SR.DARLOU ESTOU PEQUISANDO EM SEU BLOG SOBRE UMA MAQUINA CLEMENS MULLER DRESDEN Q FOI DA AVÓ DO MEU MARIDO E QUEREMOS PRESERVA-LA MAS GOSTARIA SE POSSIVÉL OBTER MAIS CONHECIMENTO SOBRE A MESMA,TEM UNS NUMEROS NELA 561468 FOI O Q CONSEGUI ATÉ AGORA COM LIMPEZA.ESTAVA MUITO ENFERRUJADA AGORA ESTA ATÉ GIRANDO.DESDE JÁ AGRADEÇO A AJUDA PUDER NOS DÁ.EDNA
ResponderExcluirOlá Edna: Elogiável a vossa intenção de preservá-la. Em breve publicarei mais detalhes sobre a Clemens Muller. Para mais informações pode contatar via e-mail "dan@creapr.org.br".
ResponderExcluirObrigado
EU TENHO UMA DESTA E AINDA FUNCIONA PLENAMENTE !!!!!ERA DA MINHA AVÓ,FAÇO QUESTAO EM GUARDA-LA,POIS TEM UM VALOR INESTIMÁVEL...
ResponderExcluirOlá, tenho uma dessas na sala aqui de casa, está muito velha e precisando de restauração tb.
ResponderExcluirMas meu pai não tem tempo. Ela não etá tão enferrujada quando a sua estava, então acho q ainda existe esperança pra ela. =]
Gostei mais do texto. Ressucitaste a Clementina! Tenho uma não tão corroída na mesa de centro da nossa sala de estar em Belo Horizonte. Resgatamo-a, eu e meu marido, a cerca de 40 anos em Sabará, cidade histórica das Minas Gerais. Mas não funciona, a pobre. Enfeita tal natureza-morta.
ResponderExcluirMaravilhoso o seu empenho e trabalho!
ResponderExcluir... sem palavras!
Adorei seu blog, bastante!
Abraços!
Que arte fascinante a sua!! Nossa! Parabéns!
ResponderExcluirEstou levando como terapia recuperar máquinas deste tipo e vivi de fato todos os procedimentos que você descreve.Parabéns!!!
ResponderExcluirEste comentário foi removido por um administrador do blog.
ResponderExcluirAconselho você aguardar até fim de outubro e mandar seu e-mail, pois estou em viagem e a resposta requer detalhamento. Agradeço pelo contasto.
ExcluirEstou fazendo um trabalho sobre Antiguidades para a disciplina de Arte e Antiquário da faculdade... Seu blog etá me ajudando, parabéns pelo trabalho! uma graça!
ResponderExcluirConheça o meu! www.kamiladel8.com