segunda-feira, 13 de março de 2023

Uma Clemens Muller ressuscitada - Publicação 40

Inicialmente desejamos penhorar nossso agradecimento aos 280.000 (até hoje) visitantes desta nossa modesta publicação, com leitores de muitas dezenas de países. São estes que nos incentivam a continuar com esta diligente e contínua realização.

Assim posto, vamos à origem destes recentes fatos:

Pois sempre que estamos em Curitiba, aos domingos, visitamos a tradicional Feira do Largo da Ordem. Ali, em pleno centro histórico da cidade, são montadas mais de 300 barracas, oferecendo os mais variados produtos, desde alimentação, lembranças, artesanatos variados, livros, antiguidades, etc.

É uma caminhada agradável, colorida e proveitosa, que ocupa vários quarteirões e, no mínimo toda a manhã. Imagino ser difícil percorrê-la sem adquirir algo útil e memorável.

Parte da Feira do Largo da Ordem - Foto: Fabio Dias PC/PR

Numa tenda, encontramos uma antiga máquina de costurar, marca Clemens Muller, em péssimo estado. Analisando suas particularidades, observamos que deve ter sido fabricada no início do século passado. Estava muito oxidada (enferrrujada), com suas partes móveis encravadas e sem a parte inferior de apoio (madeira). 
Mesmo com tais flagrantes obstáculos, resolvemos por adquiri-la, após acertado o valor.
Retornamos à nossa cidade (Toledo PR) e, ao descarregá-la, notamos mais um aborrecimento: havia uma fissura (trinca) em sua estrutura superior. Justamente a importante parte que aloja o eixo de comando horizontal e sustenta o complexo conjunto de eixos verticais.

A comprometedora fissura 
 
Ainda que comprovada esta desagradável constatação, o que culminaria no fracasso da tentativa de restauro, iniciamos o desmonte da máquina.
As dificuldades decorrentes da oxidação encontradas, não surpreenderam, pois temos meio século de batalhas vencidas no restauro destas idosas.
Seus parafusos encravados quebram à menor tentativa de torção, seus eixos estavam solidarizados por ferrugem, engrenagens com dentes quebrados, mancais enrijecidos por falta de lubrificação, etc. Obviamente a máquina esteve submetida a longas intempéries.



Retirada parte do mecanismo inferior 



Sistema interno da fronte encravado

Mas nossa obstinação lutava contra a teimosia do conjunto. Muitas peças empenaram, outras quebraram ao serem retiradas. E, dias após dias, suas centenas de partes foram acondicionadas em potes, aguardando solução. Algumas foram descartadas e substituídas por doadoras (de outras máquinas similares rejeitadas), da reserva técnica.
 
Alguma peças em final de preparação
 
Assim, todas foram submetidas a tratamentos abrasivos, químicos, torneamentos, etc. Redimensionadas e adaptadas para seus futuros posicionamentos.
 
Muitas peças e parafusos estavam solidarizados por ferrugem
 
A citada estrutura superior, então já liberada das peças móveis, foi encaminhada a um suposto especialista em soldas, que a executou com péssima aparência e desalinhamento, tendo alteradas suas dimensões e impedindo a inserção do eixo horizontal.
E a tragédia final estava próxima; pois ao menor toque, a soldagem se desfez, apresentando sua expressa incúria profissional. O presumido técnico havia declarada sua incompetência naquele trabalho, pondo um fim a qualquer tentativa de recuperação. Renunciamos à exigência de reparação, pois ele que já havia exposto ali seus limites.
 
Rompida a execrável e frágil soldadura  
 
Observe-se que a constituição do corpo da máquina é de ferro fundido, com baixíssima resistência.  Este metal é uma liga metálica para fundição em temperatura mais baixa, comum aos objetos não submetidos a maiores esforços. Possui alto teor de carbono em sua composição, variando de 2,11% a 6,67%. Já o aço contém 0,01% a 2,10% de carbono, além de incluir outros elementos e têmperas térmicas.
Outra característica do ferro fundido é sua dificuldade de soldagem, pois o aquecimento desagrega sua composição, formando cementitas (Fe3C), com aparência de sólidas borbulhas (vesículas e vazios).

Vista interna da desastrosa solda

Enfim, o fingido profissional havia se declarado competente e nossa confiança foi infrutífera. Resignamo-nos a transformar o possível restauro em mais uma peça descartada, limitada a ser doadora de suas entranhas. 
 
Porém, alguns dias após, uma tênue luz indicou um sobejo caminho: Um perito em soldas especiais (impossíveis) dispôs-se a executar a tarefa. Seria um trabalho quase inexecutável, pois, além de apenas soldar, necessitaria adicionar metal, realinhar vertical e horizontalmente. Uma empreitada de dias, intermitentemente, passo a passo, milimetricamente...
Acredito que os anjos ajudaram e o habilidoso técnico conseguiu bom intento. A soldadura não resultou linda, mas cumpriu perfeitamente suas finalidades mecânicas. Com intervalados lixamentos e emassamentos, conseguimos que a aparência melhorasse bastante.

A soldagem, já lixada e com emassamento
 
Consertada a falha, com pintura parcial

A disposição e o otimismo então incentivaram a continuar a tarefa: prosseguir com o restauro da máquina, adaptando e instalando suas peças nos devidos lugares, com suficiente precisão para permitir os movimentos necessários. Muitos parafusos tiveram seus habitáculos broqueados e torneados. Várias peças foram adaptadas, oriundas de doadoras, mas com aceitável sucesso.

Parafusos encravados sendo refurados

Orifícios recebendo rosqueamento

Executados novos parafusos 

A base de madeira foi executada, lixada e envernizada a partir de retalhos de mobiliário descartado, ajustada e permitindo encaixe suporte da máquina.
 
Base de madeira, suficiente para sua sustentação

O corpo da máquina foi preparado e pintado com esmalte sintético preto, com aceitável aparência para integrar o acervo do museu. Afinal, sua história singular destaca-se sobre a mera estética.

Ressuscitada, a Clemens Muller em pose faceira

Afinal, Clemens Muller, famosa indústria alemã, detentora da marca cujo vocábulo, originário do latim clássico, significa “clemência”. Algo como misericórdia, compaixão,... expressões que pareciam emanar desta antes abandonada nobre guerreira centenária, agora movimentando-se feliz. 

 


Ao concluir esta publicação, manifestamos a justa homenagem ao Sr. Marcelo, técnico em soldagens que conseguiu o difícil intento de reconstruir o corpo da máquina com admirável competéncia.  A ele, nossos agradecimentos. 
 
Prof. Eng. Darlou D'Arisbo






 

  



 

4 comentários:

  1. Ressuscitar uma máquina um trabalho digno de um casal dedicado. Meu parabéns. Muita persistência e amor pelas máquinas de costura.

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    1. Agradeço, Valdecir. É a humilde maneira de preservar estes fantásticos instrumentos, responsáveis pelo desenvolvimento mecânico de grandes empresas e pela emancipação feminina. Abraços

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  2. Prfofessor. Meus parabéns. Fazer essa emenda no braço é uma coisa inimaginavel, considerando que por dentro passa um eixo e que portanto, deve ser alinhado e centralizado. Genial. O sr. fez algo quase inimaginável. Partabens novamente

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  3. Caro Aurélio. Realmente inimaginável esta proeza do torneiro mecânico "artífice" Marcelo, pois, além de alinhar, centralizar e analisar o comprimento do eixo, houve necessidade de preencher o espaço proporcionado pela falha anterior. Graças à ele, tive incentivo e fôlego para restaurá-la. Você é uma das raras pessoas que entendem e valorizam este trabalho. Abraço fraterno

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